Estes são os primeiros versos do samba “Pelos jardins da cidade”, de autoria de Fernando Pellon (melodia) com o parceiro Roberto Bozzetti (letra), que compõe o repertório do álbum “Medula e osso” lançado no primeiro semestre de 2023. A gravação é da cantora Rose Maia – com quem o artista mantém amizade e uma parceria musical de longa data – e conta com mais um arranjo caprichado do músico Jayme Vignoli que também assina a direção musical do disco.
Nesta composição Fernando Pellon mais uma vez, como tem ocorrido ao longo da sua trajetória de compositor, desafia o seu próprio talento porque é o autor da melodia que se encaixa perfeitamente na letra sem nunca ter estudado música, ou ter adquirido conhecimento para tocar um instrumento musical harmônico que possa recorrer na hora de compor.
De acordo com o compositor, “Pelos jardins da cidade” é uma canção inspirada na música de Caetano Veloso “Enquanto seu lobo não vem” do álbum Tropicália ou Panis et Circencis, lançado em 1967, em plena ditadura militar (1964-1985).
“A canção do Caetano é uma paródia ao conto de fadas ‘Chapeuzinho Vermelho’, como alusão crítica ao governo militar, um típico lobo com rosnado e ódio”, disse Fernando Pellon lembrando os versos de Caetano: “Vamos passear, debaixo das rosas, dos jardins, debaixo da lama”.
“É um passeio às escondidas pela cidade-floresta do Rio de Janeiro”, afirmou o compositor.
No samba de Fernando Pellon e Roberto Bozzetti o lobo faz um caminho exatamente ao contrário do lobo da canção de Caetano Veloso. “Em ‘Pelos jardins da cidade’, ao contrário, é outro lobo que desfila a céu aberto, um estranho a não ser ouvido, em sua procura ensandecida por reinvenção e transgressão”, explicou Pellon.
“Em ‘Pelos jardins da cidade’, buscou-se uma linguagem atemporal, não datada, capaz de não apenas atravessar o tempo, mas transitar por ele evolucionariamente. Daí a inspiração em Caetano Veloso e no disco Tropicália”, disse Fernando Pellon.
Passeio clandestino
Para alguns críticos de música a canção de Caetano Veloso narra “o passeio clandestino” de um lobo que é entendido como “uma visão crítica” ao regime da ditadura militar, e que isso prova que os tropicalistas não eram alienados como chegou a ser ensaiado por uma corrente que não entendeu a mensagem do movimento à época.
“Considerar os tropicalistas como ‘alienados’ foi uma posição intelectualmente estreita de uma parte da esquerda brasileira na década de 60, visto que o movimento foi mais uma reunião de contradições do que uma convergência de consensos”, disse Fernando Pellon acrescentando que, na verdade, o Tropicalismo “procurou atingir estranhamento e quebra de paradigmas na MPB com inspiração em poetas modernistas como Oswald de Andrade. Os tropicalistas não aceitavam restrições ao que podia ou não podia ser feito”.
Fernando Pellon explica como “Pelos jardins da cidade” se enquadra nesse contexto de crítica e contestação ao sistema que discrimina e priva as pessoas de liberdade. “No processo de composição de “Pelos jardins da cidade”, provocou-se a fragmentação do objeto estético na busca de sua demolição, para depois reaproveitar o que foi descartado em subsequente reconstrução.”
…E, enfim, é assim que me salvo
É assim que me viro e reviro…
Segundo Fernando Pellon, o seu samba com Roberto Bozzetti é uma composição por meio da qual, a exemplo dos tropicalistas, “foi possível experimentar uma abordagem de renovação criativa com a finalidade de liberar o que estava reprimido pela indústria cultural e pelo mercado. O jogo entre absurdos e estereótipos, a imposição do mau gosto patogênico frente ao recato pasteurizado dos padrões vigentes”.
…O resto e morte, contração cadavérica
Bom gosto, putrefação
Ruptura pela renovação
Na opinião de vários estudiosos da música popular brasileira, a Tropicália foi considerada um movimento musical “amplo e ousado”, que envolveu outros segmentos de arte e que buscava romper com as limitações sonoras da MPB “dialogando” inclusive com a rebeldia do rock.
Para Fernando Pellon, o tropicalismo adotou como método de trabalho a antropofagia de Oswald de Andrade.
“Assim ‘deglutiu’, com uma estética de ruptura pela renovação, as contribuições dos Beatles, Jimi Hendrix, Janis Joplin e Roberto Carlos. O uso de guitarras elétricas, por exemplo, causou estranhamento em parte do público que assistia aos festivais de música popular brasileira em meados da década de 60”, afirmou.
Fernando Pellon e Roberto Bozzetti são compositores independentes oriundos de um movimento artístico de vanguarda nos anos 1980 denominado Malta da Areia, que reunia compositores, músicos, poetas e roteiristas, em Niterói, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. E a Tropicália, com certeza, foi uma das fontes de inspiração artística dos seus integrantes.
“A Malta da Areia se propunha a seguir a linha evolutiva na MPB preconizada pelos tropicalistas. Foi nesse coletivo que o disco Cadáver pega fogo durante o velório foi concebido e elaborado. É um caminho que sigo até hoje como compositor.”
Ouça:
Pelos jardins da cidade (Fernando Pellon)
https://open.spotify.com/intl-pt/track/5vJ1HWpaikK2QNSc0VvetP?si=513c36f4c83c4068
Enquanto seu lobo não vem (Caetano Veloso)
https://open.spotify.com/intl-pt/track/6d3sGpc1s0LRO4t9Yr0WYu