Uma antiga tábua de argila suméria, datada entre 2540 e 2350 a.C., acaba de lançar nova luz sobre a literatura antiga ao revelar o que pode ser o primeiro registro de uma raposa trapaceira da história. O artefato, identificado como Ni 12501, permaneceu por mais de um século negligenciado em coleções acadêmicas, até ser totalmente traduzido pela doutora Jana Matuszak, da Universidade de Chicago, e analisado em um estudo publicado na revista Iraq.
O achado traz à tona um mito inédito no qual a figura da raposa — símbolo da astúcia — emerge como protagonista de um resgate divino, muito antes de personagens semelhantes ganharem espaço em tradições como as fábulas de Esopo.
História esquecida ganha nova vida após séculos de silêncio
Descoberta no final do século XIX, durante escavações na antiga cidade de Nippur, no atual Iraque, a tabuleta passou décadas sem tradução integral. Seu estado fragmentado — com menos de um terço do texto original preservado — e a ausência de referência adequada no livro de 1956 do renomado sumerólogo Samuel Noah Kramer, contribuíram para o esquecimento acadêmico do artefato. O número de catálogo só seria revelado anos mais tarde em outra publicação.
A tábua faz parte do raro conjunto de textos literários do Período Dinástico Antigo IIIb, época marcada pela autonomia política entre as cidades-estado sumérias, mas com forte coesão religiosa e cultural.
Deuses impotentes e uma raposa corajosa
O mito retrata uma crise existencial para os antigos mesopotâmios. Ishkur, o deus da tempestade, desaparece no submundo — o kur — levando consigo seu rebanho multicolorido. Sua ausência traz seca, fome e desordem à terra. Desesperado, Enlil, líder do panteão sumério e pai de Ishkur, convoca uma assembleia divina em busca de um herói capaz de resgatar o filho perdido.
Todos os deuses se recusam, temendo os perigos do mundo inferior — exceto Raposa. Com inteligência e astúcia, ela aceita a missão e adentra o submundo levando oferendas de comida e bebida. Porém, ao invés de consumi-las, esconde-as, aparentemente burlando regras divinas que impediriam seu retorno. A tábua, infelizmente, se encerra antes de revelar o desfecho da missão.
A origem do arquétipo da raposa trapaceira
Para a Dra. Matuszak, essa narrativa representa o mais antigo exemplo conhecido do arquétipo da raposa astuta na literatura mundial. A história também é única por conceder ao pouco lembrado deus Ishkur um papel de destaque — incomum na Mesopotâmia meridional, onde a irrigação importava mais do que as chuvas.
Além disso, o mito reflete um tema recorrente na mitologia mesopotâmica: a impotência dos deuses diante de problemas humanos e a valorização da coragem e esperteza de personagens secundários. Nesse contexto, a raposa surge não apenas como uma heroína improvável, mas como um símbolo ancestral da engenhosidade que transcende o poder divino.
