A difícil arte de conviver com a perda da mãe

Thalles Cabral - Foto: Ronaldo Gutierrez

A partir do livro Triste não é ao certo a palavra, escrito por Gabriel Abreu e publicado em 2023 pela Companhia das Letras, Nicolas Ahnert estreia como dramaturgo e diretor na peça Triste! Triste… Triste?, que narra as angústias de um jovem vivendo um luto anunciado, ao descobrir que sua mãe tem apenas um mês de vida. A montagem está em cartaz no Teatro Do Núcleo Experimental. A temporada vai até final de novembro com sessões aos sábados às 20h e domingos às 19h, e às 20h às segundas-feiras.

O espetáculo amplia o universo do livro para explorar os anseios de uma geração anestesiada em busca de sua própria identidade. Muitas perguntas assombram o personagem, no solo vivido pelo ator Thalles Cabral, em uma busca urgente de conhecer a profunda essência da mãe, resgatando e reescrevendo suas memórias, enquanto se depara com a sua própria vulnerabilidade.

A peça parte, portanto, de um dos maiores dilemas humanos para expor essa crise identitária: a perda da figura materna. O corpo inerte da mãe lança o protagonista nessa autoinvestigação desesperada, explorando as consequências da orfandade prematura na formação do seu caráter. Apesar de tocar em camadas profundas, a peça também traz leveza, requintes de humor e cinismo na construção da personalidade e das vivências do personagem, cuja concepção foi a grande inspiração do autor.

O encontro de Nicolas Ahnert com o texto se deu de maneira totalmente casual. Ao se deparar com o livro durante um despretensioso passeio à livraria, prontamente se interessou pelo título, sinopse, orelha, até devorá-lo por completo. “Assim que terminei a leitura me veio a ideia de transformar o texto em uma peça. Entre muitas coisas que me chamaram a atenção, tem um hibridismo na linguagem, por usar de recursos como cartas, bilhetes, lembretes, fotos. Ele consegue costurar uma história linear com outros elementos, para além da própria narrativa, e isso soou para mim muito teatral”, pontua.

Inspirado pela história de Triste não é ao certo a palavra, o autor e diretor buscou não simplesmente representá-la no palco, mas sim criar uma outra narrativa, focada principalmente em desvendar esse filho, para além do que já existe na literatura original, revelando a profundidade da dor que o atravessa, mesmo quando escondida em seu comportamento cínico e aparentemente arrogante, em alguns momentos. “Meu maior interesse foi desenvolver esse personagem, e a liberdade dramatúrgica que o Gabriel me deu foi fundamental para isso. Para mim era importante que o público pudesse enxergar e entender a dor desse filho, para além do luto. Identificar nele um personagem humano, complexo, e não um herói ou uma vítima. Desejo que as pessoas possam se reconhecer em alguma medida e sair tocadas do teatro”, ressalta

Em entrevista ao site SOPA CULTURAL, o ator Thalles Cabral fala da peça, da sua relação com a finitude e seus projetos. 

SOPA CULTURAL: A relação entre mães e filhos é delicada. Como você consegue interpretar um filho que sabe que a mãe irá morrer? 

Thalles Cabral – O espetáculo começa com essa tragédia anunciada. Mesmo sendo o curso natural das coisas, e algo que toda a humanidade vai enfrentar, a perda da mãe é o segundo (e, dessa vez, mais doloroso) corte do cordão umbilical. Acho que esse é um fantasma que convive com a gente: o medo de perder quem a gente ama, quem nos trouxe e apresentou para a vida. Então entendo muito bem esse medo gigantesco que existe dentro desse personagem, e que vai crescendo até virar um monstro. E acho que o público entende também. Todo mundo ou imagina como pode ser, ou já sabe como é. Eu emprestei para ele esse meu fantasma. 

SOPA CULTURAL:  Nossa cultura tem dificuldades com a finitude. Como você vê isso? 

Thalles Cabral – É mesmo uma cultura muito ocidental. Certa vez, eu estava filmando um longa em Varanasi, na Índia, uma das cidades mais antigas e sagradas do mundo, onde as pessoas viajam pra morrer. Portanto, é um lugar onde o assunto da finitude é muito presente. Testemunhando alguns (vários) rituais de cremação diários que ocorriam à beira do rio Ganges, um dos atores indianos percebeu minha incredulidade e desconforto. 

Ele me perguntou por que eu estava tão impressionado, e eu disse que era a naturalidade daquele rito que mexia muito comigo. À nossa volta, havia centenas de pessoas, animais, fumaça, barulho, muita informação acontecendo ao mesmo tempo. Aí ele me olhou e perguntou: “essa roupa que você está usando, você vai usar pra sempre?”. Eu disse que não, e ele completou: “pois então, com o nosso corpo é a mesma coisa. É como uma roupa. A gente troca para encontrar um outro que nos sirva melhor”. Achei muito bonita essa forma de enxergar a morte. Não como um fim, mas como uma transição. Acho que esse é um olhar reconfortante para seguir. 

SOPA CULTURAL: E para o personagem, como você se preparou? 

Thalles Cabral – Para início de conversa, li e assisti muita coisa sobre a relação entre mãe e filho, sobre luto. Eu e o Nicolas passamos muitos ensaios conversando sobre tudo. Só Deus sabe o quão longe nossas conversas foram. Fomos cavando cada cantinho desse universo que estávamos prestes a adentrar: as relações com os nossos pais, familiares, cidades natais, memórias, registros, lutos, etc. 

Na parte prática, tive preparação vocal com a Alessandra Zalaf, e fomos em busca do treino ideal para segurar vocalmente um espetáculo de 1h30. Além da grande quantidade de texto, o personagem muda de registro o tempo todo, e de uma hora pra outra. É quase um bungee jumping. Ora ele está lá em cima, num registro solar, animado, histérico, acelerado; ora nas profundezas, num registro sombrio, pra dentro, introspectivo. E olha, corri muito durante o processo. Literalmente (risos). Saía do ensaio e ia correr. Isso me ajudou a trabalhar o condicionamento, o fôlego, o diafragma e a energia para segurar o espetáculo até o fim. 

SOPA CULTURAL: E quais são suas metas profissionais para 2026? 

Thalles Cabral – Quero fazer mais teatro. Quero muito lançar meu segundo álbum de estúdio, que já está todo composto. E vou lançar meu primeiro curta-metragem, “Um Passeio”, roteiro meu e que dirigi junto com a Nanda Rocha, protagonizado pela Chris Couto. O filme foi rodado neste ano, está agora em fase de finalização e funciona como um epílogo do meu roteiro de longa “Célia Não Pode Esperar”. 

Ficha técnica:

Texto e Direção: Nicolas Ahnert. Elenco: Thalles Cabral. Cenário e Figurino: Pazetto. Iluminação: Nicolas Caratori. Trilha Sonora: Alê Martins. Direção de produção: Nicolas Ahnert. Produção: Laura Sciulli e Victor Edwards. Realização: ZERO TEATRO.

Serviço:

Temporada: Novembro (sábados às 20h, domingos às 19h e segundas às 20h). Até 30 de novembro.

Classificação: 14 anos
Duração: 70 minutos
Ingressos: R$80
Link para venda: linktr.ee/tristeespetaculo 

Teatro Do Núcleo Experimental
R. Barra Funda, 637 – Barra Funda, São Paulo – SP
Capacidade: 100 lugares.

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