As possibilidades do gótico na literatura japonesa

Quando se pensa em literatura gótica, imagina-se castelos sombrios, criptas claustrofóbicas, fantasmas e demônios. Uma estética predominantemente europeia, baseada nos textos que definem o gênero. Entretanto, surge uma questão interessante quando se imagina o que nasceria da junção da estética gótica tradicional com diferentes culturas e contextos.

Nihonga Honô, de Uemura Shôen, 1918. Este trabalho é inspirado pela Lady Rokujô, famosa por configurar a primeira aparição na literatura em prosa do fenômeno denominada ikiryô, que seria a grosso modo “possessão por espírito de pessoa viva” em Genji Monogatari.

“A literatura gótica é, em grande parte, uma literatura ligada ao terror e ao medo. Talvez, uma melhor maneira de se compreender o gótico na literatura seja entendê-lo como um momento narrativo no qual a nossa razão é desafiada por um acontecimento insólito. Como discurso literário, o efeito ‘gótico’ consiste na criação de uma atmosfera narrativa, que deve envolver o leitor na história, para em seguida assustá-lo, mas de modo que lhe provoque prazer. Entendida assim como efeito narrativo, a literatura gótica é um dos mais influentes modelos para as histórias de horror e terror que temos atualmente.” (Cid Vale)

O Livro Gótico Japonês lançado pela Laboralivros (selo Urso) e que foi realizado através de financiamento coletivo e traduzido por estudantes e professores dos departamentos de japonês da UFPR e da USP, busca justamente explorar essa estética, trazendo uma seleção de contos clássicos e modernos.

Através de sete contos, podemos observar não só diversos temas classicamente presentes na literatura gótica, como também diversas maneiras de retratar e abordar estes temas, todos encharcados com o lirismo inequivocadamente japonês. Essa coletânea é uma excelente introdução a esse lado tão pouco explorado da literatura gótica, abrindo as portas para um emocionante universo cultural, não somente pela apresentação do que poderia ser o gótico na visão japonesa, como também pelo quanto isso vem de raízes antigas e populares de sua cultura.

O conto de abertura é um fragmento do famoso Genji Monogatari (O conto de Genji, considerado o primeiro romance do mundo), da escritora, poeta e dama da corte Murasaki Shikibu, escrito entre 1000 e 1012, pré-datando o movimento gótico europeu em pelo menos 700 anos. Entretanto, pode-se observar nele muitos dos temas que seriam abordados pela estética gótica tanto tempo depois. Murasaki dedica muito de sua escrita à angústia da condição humana e à efemeridade das coisas, apresentando uma narrativa melancólica em meio à pompa e às circunstâncias da vida na corte imperial e nobreza. Esse contraste é quintessencialmente gótico em sua natureza, e sem dúvidas inspirou muitos dos autores que viriam a abordar temas parecidos.

Ainda dentro dos clássicos japoneses, temos dois contos de Ueda Akinari (séc XVIII), expoente de um estilo mais ligado à cultura popular, em especial os kaidan (histórias de medo). São eles Caldeirão de Kibitsu e A Luxúria de Uma Serpente, abordando um tema que talvez seja o maior ponto de distinção entre o gótico japonês e o gótico europeu: a forma como é retratado o feminino.

Nihonga Honô, de Uemura Shôen, 1918. Este trabalho é inspirado pela Lady Rokujô, famosa por configurar a primeira aparição na literatura em prosa do fenômeno denominada ikiryô, que seria a grosso modo “possessão por espírito de pessoa viva” em Genji Monogatari.

Na literatura europeia, as mulheres costumam aparecer como donzelas em perigo, ou figuras oprimidas que buscam a liberdade através da transgressão dos costumes da época, ou então como tomadas pela insanidade. A heroína gótica aparece tanto como heroína quanto como vítima. Já na literatura gótica japonesa, vemos as mulheres como poderosas, sobrenaturais — também oprimidas, mas libertando-se dessa opressão, transcendendo sua angústia e tristeza e tornando-se espíritos vingativos, trazendo ruína aos homens que as haviam traído de alguma maneira. Temos esse tema aparecendo também nos próximos contos, A Esposa Vai Para o País de Tamba e o Homem é Amarrado no Monte Oe, que são registros do compêndio Konjaku Monogatari (coletânea de narrativas do ‘Agora é passado’, século XI).

É nesse ponto que se percebe mais claramente a costura proposta pela edição: uma conversa de características da literatura gótica entre autores e épocas, ao apresentar esses textos que vem antes de qualquer contato do Japão com o Ocidente (e alguns antes da existência da literatura gótica em si) e textos já do início do século XX, que claramente foram influenciados por seus antecessores.

Dessa forma, temos Akutagawa Ryûnusuke (1892-1927) abordando outro tema frequentemente associado à estética gótica, que é o horror, e isso é muito bem exemplificado no conto Pintura Infernal, que usa as palavras para pintar cenários grotescos e violentos. A vividez com que descreve a titular pintura infernal é de causar arrepios mesmo nos mais experientes leitores de histórias de terror. Ao ler esse conto, pode-se lembrar da obra de Edgar Allan Poe, mestre da literatura gótica americana. Assim como Poe, Ryûnosuke também teve uma vida conturbada e morte precoce, acelerada por problemas de saúde, e a melancolia de tal existência sofrida transborda nas páginas de seus escritos.

Retrato do autor Izumi Kyôka.

O último conto dessa coleção traz a estreia do autor Izumi Kyôka (1873-1939) – tido no Japão como mestre do gótico – em terras brasileiras. Nunca antes publicado no Brasil, O Santo do Monte Kôya exemplifica outra característica tradicional da literatura gótica: a narrativa-moldura. Nessa história, acompanhamos o ponto de vista de um viajante que se encontra com um monge e, por estarem indo ao mesmo lugar, decidem passar a noite juntos em uma pousada, fazendo companhia um ao outro. Durante a noite, por ambos terem dificuldade para dormir, o narrador pede ao monge que lhe conte histórias.

O restante do conto se dedica a narrar as histórias fantásticas e supernaturais do monge, envolvendo viagens através de florestas de onde caem sanguessugas das árvores, um rio que tinha a capacidade de curar ferimentos e revigorar quem se banhasse nele, e uma ponte que serpenteava como se estivesse viva.

O Livro Gótico Japonês além de ser traduzido direto do idioma japonês, conta com prefácio relevante sobre as raízes do gótico e da presença dele na literatura japonesa escrito por Cid Vale Ferreira e está disponível no site da editora com desconto ou na Amazon em versão física ou e-book.

Gótico Japonês
Editora Urso (laboralivros), 238 páginas.
Autores: Akutagawa Ryûnosuke, Izumi Kyôka, Ueda Akinari, Murasaki Shikibu
Organizadores: Márcia Hitomi Namekata e Lua Bueno Cyríaco
Tradutores: Dion Ribeiro, Luiza Nana Yoshida, Marina Gonçalves Pietsch e Jovanca Kamizi Ichikawa

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