Foto: Divulgação

Caso de estupro ocorrido à luz do dia, no Rio, é levado ao palco pela Polifônica, de Luiz Felipe Reis e Julia Lund

Adaptação do livro “Vista chinesa”, de Tatiana Salem Levy, monólogo é construído a partir de relato contundente e estreia em março

por Jorge Rodrigues

Finalista do Prêmio Jabuti, o romance “Vista chinesa” (2021), de Tatiana Salem Levy, ganha inédita adaptação teatral pelas mãos da Polifônica, de Luiz Felipe Reis e Julia Lund. Espetáculo multidisciplinar, que reúne cinema, música e teatro, “Vista” leva ao palco os desdobramentos de um caso atroz de estupro ocorrido às vésperas da Olímpiada de 2016, no Rio, em plena luz do dia, em um dos principais cartões-postais da cidade.

A montagem do solo — que estreia no dia 10 de março no Espaço Sérgio Porto, no Humaitá — gira em torno de um contundente relato, em primeira pessoa, desta experiência absurda de violência sexual e, sobretudo, do processo de metamorfose existencial vivido pela personagem após este acontecimento, com dramaturgia assinada por Luiz Felipe, Julia e por Catharina Wrede.

Em cena, a atriz conta a história da arquiteta que, antes de ir a uma importante reunião com a prefeitura, a respeito da construção do Campo Olímpico de Golfe, tem seu destino golpeado por um homem que atravessa o seu caminho. Esportista, ela decide correr no Alto da Boa Vista antes de seguir para o compromisso de trabalho. É durante este percurso que ela é abordada por um sujeito armado, que encosta um cano de revólver na sua cabeça e a arrasta floresta adentro. Forçada a avançar mais e mais na mata, a personagem, que também se chama Julia, assim como Lund, chega a um ponto de completa desorientação geográfica e psíquica. Então, é violentada, estuprada e abandonada sozinha na mata.

Viva e morta ao mesmo tempo, com a consciência de que nada será como antes, Júlia tem sua existência transfigurada. O passado é um assombro. O presente é um abismo. O futuro, desconhecido. Com as roupas rasgadas, sem telefone e descalça, ela se arrasta como pode para encontrar um caminho de volta até a estrada enquanto a luz se dissipa por entre as árvores. Horas mais tarde, após uma infernal e solitária jornada com os pés no asfalto, ela enfim chega em casa, onde o namorado e alguns familiares a esperam.

“É um trabalho que se abre a múltiplas dimensões e questões. A peça se apresenta como uma jornada de reflexão e de elaboração sobre os desdobramentos deste caso de estupro, um tipo de crime que envolve violência de gênero e sexual, e toda a opressão produzida e legitimada pela sociedade machista e patriarcal. De certa forma, é contra o silenciamento e a ocultação de um dos crimes mais praticados e mais invisibilizados no país que levantamos esta encenação. Afinal, o silêncio e o esquecimento protegem somente opressores e agressores”, afirma a atriz.

Além de sua fundamental camada de denúncia de questionamento político, social e cultural, o espetáculo, segundo o diretor, Luiz Felipe Reis, foca, sobretudo, nas capacidades humanas de resiliência e de regeneração. “Falamos na afirmação da pulsão de vida e das forças de ligação à vida (pulsão erótica) em contraponto às forças de destruição e de morte, de desligamento e de desistência. ‘Vista’ oferece ao público tempo e espaço para uma delicada reflexão sobre esta tenaz e persistente capacidade humana de não sucumbir e de não desistir da vida mesmo tendo vivido e atravessado o atroz, o horror, o inferno”, diz ele.

Ao ser levado aos palcos como um solo teatral e audiovisual, “Vista” ganha novas camadas e planos de realidade e de ficção. Neste sentido, a montagem dá continuidade às investigações estéticas e temáticas da Cia. sobre a polifonia cênica, sobre a tênue linha que aproxima e dilui as fronteiras entre autobiografia e autoficção, assim como sobre as relações entre o trágico e o trauma, a violência e a resiliência, a metamorfose, a regeneração e afirmação das pulsões de vida — todos estes elementos também foram investigados e tensionados em seus projetos anteriores, como “Estamos indo embora…”, o díptico “Amor em dois atos” (2016), “Galáxias” (2018) e o solo audiovisual “Tudo que brilha no escuro” (2020).

“Vista” expõe em cena um processo em que a memória é uma capacidade humana sempre lacunar, incompleta, seletiva, mas ainda assim fundamental a todo processo de recomposição da vida.

A equipe criativa do espetáculo conta ainda com a performance musical ao vivo de Pedro Sodré, criação e manipulação de vídeo ao vivo de Isis Passos e Helô Duran, criação cinematográfica de Dani Wierman e Mari Cobra, cenografia de Dina Salem Levy, luz de Alessandro Boschini, direção de movimento de Laura Samy e figurino de Thais Delgado.

Cia Polifônica

Polifônica é um núcleo multidisciplinar de pesquisa e criação artística fundado pelo diretor e dramaturgo Luiz Felipe Reis e pela atriz Julia Lund no Rio de Janeiro. Com foco em teatro e em experiências performativas, desenvolve desde 2014 uma pesquisa estética e temática acerca das noções de “Polifonia Cênica” e de “Contra-cenas ao Antropoceno”, articulando o teatro e outras formas de arte, com o objetivo de construir experiências imersivas capazes de gerar reflexão e sensibilização para a crise ambiental e civilizacional que a humanidade produz e enfrenta nesta era do AntropoCapitaloceno. A Polifônica foi indicada ao Prêmio Shell 2015 na categoria Inovação, com “Estamos indo embora…”, pela “multiplicidade de linguagens artísticas adotadas para abordar a ação do homem nas transformações climáticas”. Em 2016, a Cia. recebeu indicações e conquistou prêmios (APTR e Cesgranrio) com “Amor em dois atos”, criada a partir da obra do dramaturgo francês Pascal Rambert. Em 2018, apresentou “Galáxias”, com textos de Luiz Felipe Reis e do argentino J. P. Zooey, e em 2020 criou o solo teatral e audiovisual “Tudo que brilha no escuro”, indicado ao Prêmio APTR 2020 de melhor Espetáculo Inédito Ao Vivo. Além do espetáculo “Vista”, para 2023 a Polifônica prepara a estreia de “2666”, adaptação inédita na América Latina para a obra de Roberto Bolaño, e para 2024 planeja a estreia de “AWEI!”, a partir da obra “Banzeiro òkòtó”, de Eliane Brum.

Ficha técnica

  • Atuação: Julia Lund
  • Direção: Luiz Felipe Reis
  • Texto original: Tatiana Salem Levy
  • Adaptação dramatúrgica: Catharina Wrede, Julia Lund e Luiz Felipe Reis
  • Trilha sonora original e Performance musical: Pedro Sodré
  • Pesquisa musical e sonora: Luiz Felipe Reis e Pedro Sodré
  • Cenário: Dina Salem Levy
  • Luz: Alessandro Boschini
  • Direção de tecnologia, criação de vídeo ao vivo, efeitos: Isis Passos e Helô Duran (Miwí)
  • VJ: Isis Passos
  • Câmera ao vivo: Luiz Felipe Reis
  • Direção de vídeo e de fotografia: Dani Wierman e Mari Cobra
  • Operação de câmera em vídeo: Felipe Ovelha
  • Figurino: Thais Delgado
  • Direção de movimento: Laura Samy
  • Interlocução artística: Fernanda Bond
  • Design gráfico: Clarisse Sá Earp (umastudio)
  • Fotografia: Renato Pagliacci
  • Make: Sabrina Sanm
  • Mídias Sociais: Luli Fru
  • Assessoria de comunicação: Dobbs Scarpa
  • Direção de produção: Gabriela Gonçalves e Rodrigo Fidélis (Corpo Rastreado)
  • Produção executiva: Anne Mohamad
  • Idealização e coprodução: Polifônica

Serviço

  • Espaço Sérgio Porto.
  • Rua Humaitá, 163 – Humaitá
  • Quinta a sábado, às 20h
  • Domingo, às 19h
  • Estreia: 10/03, às 20h
  • Sessão extra: 05/4, às 20h
  • Temporada: de 10/03 até 09/04
  • Duração: 80 minutos
  • Classificação Indicativa: 16 anos
  • Ingressos: R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia)

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