A desigualdade racial que atravessa a sociedade também se manifesta no esporte de forma nada sutil. Mesmo em ligas como a NFL, onde mais de 70% dos atletas são pretos, de acordo com uma análise divulgada pela Harvard, os cargos de comando continuam nas mãos de uma elite branca que concentra poder, dinheiro e decisão. No futebol brasileiro, a cena não é diferente: técnicos negros são exceção, dirigentes são minoria, e o racismo estrutural segue determinando quem corre e quem comanda.
Para o comentarista e personal trainer Bruno Sapo, essa discrepância é um retrato direto das estruturas sociais. “A NFL é uma liga em que os donos majoritários dos times são homens brancos bilionários, e o time é passado de geração em geração, o que pode trazer resquícios culturais prejudiciais, ainda mais potencializados pelo momento político atual do país”, explica.
“Hoje, são 70% de jogadores negros e esse número vai reduzindo quando comparado a cargos de comissão técnica, gerentes, presidentes e donos. Já tivemos dono de time falando: ‘se os jogadores negros não gostam daqui, eles devem voltar para a África e ver o quanto é ruim’. Na minha opinião, é apenas um reflexo da sociedade.”
O Brasil também é racista
No Brasil, a lógica se repete. A Série A do Campeonato Brasileiro não conta atualmente com nenhum treinador negro. “Roger Machado era o único e foi demitido”, lembra Bruno. “Dá-se valor ao jovem treinador branco e não se contrata o jovem treinador negro porque ainda não é ‘experiente o suficiente’. Quando se observa que esportes como tênis, golfe ou polo só têm atletas brancos em caráter de exceção, já fica evidente como o racismo está presente em modalidades que demandam mais material para a prática.”
Pretos são mais fortes?
A desigualdade também se sustenta em estereótipos criados ainda no período escravocrata. A ideia de que pessoas pretas são naturalmente mais fortes e resistentes, enquanto brancos seriam mais estratégicos, continua moldando oportunidades e percepções.
“Por muito tempo se usou o argumento de que negros não nadavam bem porque tinham mais massa magra ou ossos diferentes, quando na verdade é só porque o acesso a piscinas é mais restrito a lugares mais pobres e, consequentemente, em muitos lugares do Brasil e dos EUA, lugares de maioria preta”, pontua Bruno.
“Pais que não sabem nadar não ensinam seus filhos a nadar. Isso se torna um problema cultural e estrutural e, por consequência, faz com que tenhamos menos atletas adultos negros no esporte. O problema é cultural e estrutural, sem justificativa fisiológica.”
A própria mídia esportiva contribui para reforçar essa lógica ao reservar posições de análise e narração majoritariamente a pessoas brancas. “Durante muito tempo eram negros jogando e exclusivamente pessoas brancas narrando e comentando, o que tem mudado recentemente”, observa Bruno, que inclusive se destaca como um dos primeiros comentaristas pretos da NFL Brasil.
Ele cita a atriz Viola Davis: “Você precisa ver uma manifestação física do seu sonho”. E completa: “Quando estou comentando, outros podem se ver em mim e pensar que também podem chegar. Quando a transmissão é exclusivamente branca e masculina, mulheres, negros e pessoas com deficiência nem consideram a possibilidade de ocupar aquele espaço.”
Leis para “inglês ver”
Nos Estados Unidos, a tentativa de enfrentar a desigualdade passou por iniciativas como a Rooney Rule, que obriga equipes da NFL a entrevistar ao menos um treinador negro para vagas abertas. A medida, no entanto, teve pouco impacto prático.
“Na prática, essa lei não funcionou. Times chamavam qualquer treinador apenas para ‘dizer que chamaram’ quando já tinham outro (branco) praticamente fechado”, relata Bruno. “As ligas e campeonatos têm que ser intencionais nessa questão, assim como atletas também têm que se posicionar, pensando até no próprio pós-carreira.”
O acesso desigual à educação também se reflete diretamente nessa dinâmica. “No Brasil, com certeza. O preço para tirar a licença de técnico da CBF é caro e a exclusão já começa daí”, afirma. “Nos EUA, muitos treinadores, após jogarem, começam a assumir cargos em times e programas de faculdade menores, têm experiência dentro e fora de campo e simplesmente não conseguem chegar ao cargo de treinador principal de uma equipe na NFL.”
A resistência à mudança é visível nos dois contextos. “Em ambos os casos, são muito resistentes porque quem manda é quem tem mais dinheiro e, em virtude de anos de desigualdades, quem tem mais dinheiro em sua maioria é branco. Assim, esse problema fica de lado. Na NFL, por ser uma liga fechada e os clubes pertencentes a famílias, talvez esse buraco seja ainda mais fundo”, afirma Bruno.
Quarterbacks pretos sim
Durante décadas, atletas negros foram barrados da posição de quarterback, considerada estratégica e de liderança, com a justificativa racista de que não pensariam com a mesma clareza que os brancos. “O primeiro QB negro na NFL, Willie Thrower, foi em 1953. Mas durante anos a posição de liderança era exclusivamente branca”, lembra Bruno.
“Além do pensamento racista de que negros correm, logo vão jogar em outra posição, e não pensam, logo não podem jogar de QB, existia a noção de que seria impossível um homem negro exercer um papel de liderança. Hoje, em 2025, a NFL iniciou a temporada com metade dos seus times com QBs negros como titulares.”
Mesmo com avanços, a diferença no tratamento persiste. “O exemplo disso é como Lamar Jackson, QB do Baltimore Ravens, mesmo sendo um dos melhores lançando a bola, ainda é comparado a um running back por sua capacidade sem igual de correr”, aponta. “Na cabeça de muita gente, a posição de QB deve ser jogada como era pelos jogadores brancos nos anos 40 e 50. O fato de ele conseguir fazer os dois muito bem é impensável para essas pessoas, que ainda pensam como no século passado.”
Saiba mais sobre Bruno Sapo
Os conceitos do futebol americano e os R$ 200 emprestados do pai foram suficientes para levar Bruno Sapo a se tornar uma referência em educação física. Ex-atleta, educador físico e comentarista, Bruno é conhecido por desenvolver o Treino do Sapo (TDS), uma metodologia própria de condicionamento físico criada para pessoas comuns, baseada nos fundamentos do futebol americano. “Preto, Profissional de Educação Física, anti-racista, treinador, ex-atleta, nerd e crossfiteiro”, como se descreve Bruno, ele se posiciona abertamente sobre temas que muitos evitam, como desmistificação da atividade física, gordofobia, racismo, entre outros, e se destaca ainda mais por isso.
Mais informações sobre Bruno Sapo
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