No conto “Quarto de casal”, as personagens discutem sobre o comprometimento de cada um com as tarefas domésticas e os compromissos familiares. A mulher, lá pelas tantas, externa seu desconforto com o tanto de livros pela casa. “Sou um adúltero literário”, reconhece o marido. O escritor é, antes de tudo, um leitor voraz, e a frase pode muito bem ser aplicada a Jairo Carmo. Mas atenção à ressalva: o adjetivo adúltero não deve ser entendido no seu sentido literal, de traidor, mas no sentido de alguém que anseia novas experiências, tal e qual o leitor deseja novas aventuras. Sob este aspecto, o autor aventura-se por diferentes estilos de narrativas, todos elaborados e, o melhor, num resultado surpreendente.
“Viver é a soma de tudo, não tem nome” (Jairo Carmo)
As duas estórias que abrem a coletânea tratam da relação entre avô e neto(a) sob diferentes perspectivas. Na primeira delas, “Aquarelas de macaquinhos”, cabe ao avô narrar a trama, na qual misturam-se reminiscências da sua vida ao olhar sobre as diferenças entre as duas infâncias . Em “Fim de tarde com vovô”, o avô narra episódios aos netos, dos quais um deles conduz a narrativa. E a trama abre espaço a uma marca que se fará presente em outros contos: a da narrativa que abarca narrativas outras.
Tal característica faz-se presente em “Esperando doutor Fausto” e “Crônica de um escritor confinado”. Em ambas, tanto uma matéria de jornal quanto o episódio ouvido de soslaio abrem brechas na narrativa principal, se sobrepondo uns aos outros, resgatando (e atualizando) uma tradição na literatura universal, presente em obras lapidares de autores como Homero e Cervantes.
Com a mesma maestria com que fabula, Carmo experimenta diferentes formas de narrativas. Da mesma forma com que mistura invenção e memória nos dois contos que abrem a coletânea, no texto seguinte, ‘A morena do papagaio”, o leitor depara-se com uma contenda envolvendo vizinhos e a disputa da ave do título. A trama fica, desta vez, no limiar entre a ficção e a crônica, num estilo que, de tão bem construído, remete-nos às narrativas de mestres do gênero como Fernando Sabino (1923-2004) e Paulo Mendes Campos (1922-1991).
Uma das funções da literatura é a de fugir da previsibilidade e, assim, surpreender o leitor. Esse requisito também é cumprido pelo autor. Não à toa, encontramos em dois dos contos a expressão “golpe de teatro”, oriunda do francês coup de théâtre. Ao longo da coletânea, o leitor pode ser conduzido por um caminho e, de repente, se dar conta de que o autor pegou outra rota. E isso se dá em todos os contos, até mesmo no de tom epistolar que encerra a coletânea, uma carta da filha à mãe. A soma de todas essas características resulta, como observa Jonatan Silva na orelha, num “livro esculpido” por aquele que é um “escritor-artesão”.
Sobre o autor:
Jairo Carmo nasceu em Monte Alegre (PA) em 1953. Dedicou-se à advocacia e à magistratura, tendo sido juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ). É membro da Academia Brasileira de Letras da Magistratura (ABLM) e professor de Direito Civil, tendo, neste âmbito, coordenado a Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj. Estreia na literatura com “Balaio de dois” (Imprimatur, 2013), com crônicas e ensaios, enveredando –pela arte do conto nos quatro livros seguintes: “Amores subversivos” (2014), “Histórias inverossímeis” (2015), “O cão do teu olhar” (2018) e “Depois de tudo” (2022), todos editados pela 7 Letras. Foi premiado pela Academia Paraense de Letras pelo texto teatral “Nu” e o conto “Abaporu”, do seu novo livro, foi laureado pela Academia Fluminense de Letras (AFL).
Título: Depois de tudo
Autora: Jairo Carmo
Editora: 7 Letras
Lançamento: novembro de 2022
Formato: 14 X 21cm
Número de páginas: 128
Preço: R$ 54,00