Uma guitarra fantasmagórica pontua o escuro como se abrisse frestas minúsculas em uma cortina que retém a claridade da rua, como se cada nota abrisse um pequeno furinho e deixasse aos poucos a luz entrar. Mas não é dia, é noite e a luz que entra, tingida de vermelho pelos letreiros luminosos e faróis de carros e motos, deixa o clima noturno com um ar apaixonado e latino, escancarado por um acorde derramado, que abre espaço para a bateria e o baixo entrarem sorrateiros, lentamente criando um clima tenso e solene, rasgado pela voz sedutora e sinuosa de Marya Bravo nas onze canções autorais inéditas.
“Outra vez o coração se enganou, confiou em um eterno talvez” – e assim a atriz e cantora anuncia, logo na faixa de abertura, emotiva e concisa, o título de seu quarto disco, seu reencontro com a música. “Eterno Talvez” é fruto do que ela achava que seria o final de sua carreira de artista com uma peça de teatro que aceitou fazer por motivos pessoais que a trouxeram de volta para o seio dos sons. Não por isso carrega tantos sentimentos conflituosos e uma musicalidade que intersecciona gêneros musicais tão diferentes num encruzamento ao mesmo tempo dramático e mágico, em que ela ergue sua cabeça para encarar de volta e de frente sua primeira paixão: a música.
Filha de Zé Rodrix e Lizzie Bravo, ela já vinha pensando, antes da pandemia, em abandonar a carreira de artista, que abraçou ainda na infância, para dedicar-se a outras atividades. Queria afastar-se dos palcos e tornar-se nômade digital, quando, depois do período pandêmico, recebeu um convite para participar de um musical sobre o Clube da Esquina. Dirigido por Dênis Carvalho e com direção musical de Kassin, a peça “Clube da Esquina – Sonhos Não Envelhecem” mexeu com o lado emocional da cantora, porque Milton Nascimento havia sido o padrinho de casamento de seus pais.
Ao aceitar fazer a peça, que lhe rendeu duas indicações inéditas de melhor atriz em dois prêmios, Marya reconectou-se com sua carreira musical, parada há mais de dez anos, quando lançou o disco “Comportamento Geral – As Canções da Resistência”, em 2014. Embora sua trajetória como atriz esteja comumente ligada à música (ela fez carreira participando de musicais como “Mimosas da Praça Tiradentes” e “Beatles num Céu de Diamantes”) mal sabia que o espetáculo que aceitara fazer por motivos familiares a reconectaria com a carreira que achava que já havia se despedido e que aquela nova convivência musical acendeu a paixão pelo fazer música que achava que havia apagado de vez.

Nobru, Marya Bravo e Dony Von – foto Leo Aversa
Chamou seu parceiro Nobru, integrante da lendária banda de hardcore carioca Cabeça e atualmente no Planet Hemp e que já trabalhou nos seus três discos anteriores – o autoral “Água Demais por Ti” (2009), “De Pai Pra Filha – Marya Bravo Canta Zé Rodrix” (2011) e o já citado “Comportamento Geral” (2014) – para fazer o que achava que seria um último show no Rio de Janeiro, em cima do repertório do disco de 2014, quando cantou músicas de resistência à ditadura militar de 1964. Mas o reencontro com o velho parceiro mostrou que havia um outro caminho a ser percorrido – um novo caminho.
“Eterno Talvez” começa há dois anos, quando ela passa a dividir sua semana entre a temporada da peça em São Paulo e o que seria seu novo disco no estúdio que Nobru tem na Gávea no Rio de Janeiro – chamado Graveá, do qual se tornaria sócia em seguida. O músico e produtor, que já foi casado com a irmã de Marya e que ela considera mais do que um parceiro, mas da família, logo percebeu que o trabalho poderia enriquecer com a presença de outro amigo, o músico Dony Von, velho conhecido da cena independente carioca, que já havia tocado com Marya e que atualmente toca no Muzgo (com o Nobru) e que já substituiu o baixista do Planet Hemp em alguns shows, por indicação do amigo que toca na banda. Logo os três se tornaram uma unidade, compondo músicas coletivamente e perseguindo uma estética definida por Nobru, que tinha uma visão.
“Ele me falava: tem duas esquinas, numa delas tem uma banda de hardcore, de punk rock, e na outra esquina tem uma cantora cantando com um piano”, lembra Marya, usando esta metáfora, tão bem conhecida dos três, como ponto de partida. E entre guitarras e beats de música eletrônica, aos poucos foram acrescentando piano, violão e até cordas, chegando ao desplante de entrarem no estúdio com um violino e um violoncelo para tocá-los sem nunca ter feito isso. Não se deram bem com o violino, mas conseguiram notas longas no violoncelo, que gravaram aos pedaços e colocando-os nas canções.
Mas a esquina cacofônica descrita por Nobru é mais estética que sonora. “Eterno Talvez”, influenciado tanto pelo disco ao vivo do grupo inglês Portishead, pelas imersões sonoras da cantora islandesa Björk e pela crueza acústica do trio paulista Metá Metá, o álbum busca uma sonoridade que ao mesmo tempo consegue ser tão densa e crua quanto delicada e suave. Não tem nada de barulhento ou pesado – a não ser o tema de algumas canções, quase todas falando sobre crises existenciais, relacionamentos conflituosos e tensões latentes. Sonoramente está próximo das canções de cabaré, do jazz dos anos 40, das canções da era de ouro do rádio, da música eletrônica downtempo e do hip hop instrumental, equilibrando-se entre universos tão distantes quanto cordas, guitarras distorcidas e theremins. O ruído do punk (que Marya bem conheceu quando morou em Nova York nos anos 80 e frequentava o clássico CBGB’s) vem muito mais como pressão estética do que como barulho ou agressividade.
“Eterno Talvez” é um disco de trip hop e, como tal, nunca transborda, sempre deixando a tensão limítrofe como régua emocional da tensão passional que atravessa todo o álbum, de forma concisa, ao mesmo tempo bela e trágica, como o olhar desafiador que a cantora lança ao ouvinte na quente capa do álbum. Traz onze canções autorais inéditas feitas por ela ou em parcerias e uma surpresa: uma canção não-registrada do pai Zé Rodrix, a “Faca no Peito”, descoberta a partir do contato com a irmã, a também cantora Barbara Rodrix.
Alexandre Matias é jornalista, curador de música e diretor artístico e comanda o site
Músicas
1 · Eterno Talvez (Marya & Dony)
2 · À Deriva (Marya & Dony & Nobru)
4 · Tudo Por Acaso (Marya & Dony)
5 · Quem É Que Vai? (Marya & Dony & Nobru)
6 · Braços Abrigo (Marya & Dony & Nobru)
7 · Ai Quem Dera (Marya & Dony & Nobru)
9 · Loucura Confirmando (Marya)
10 · Rainha Do Nada (Nayana Carvalho)
11 · Vai Acontecer (Marya & Nobru)
Ficha Técnica
Produzido por Nobru e Dony Von
Mixado por Pedro Garcia
Masterizado por Nobru
Produção executiva de Marya Bravo
Gravado nos estúdios cariocas Graveá e Cantos do Trilho por Nobru, Pedro Garcia e Elton Bozza de novembro de 2022 a novembro de 2024
Show: “Eterno Talvez” – Marya Bravo
Datas: 21/05 e 28/05, quartas, às 20h
Local: Audio Rebel (Rua Visconde de Silva, 55 – RJ)
Preço: 25,OO https://www.sympla.com.br/evento/lancamento-de-album-eterno-talvez/2960550
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