Entre a delicadeza e a tensão

Marya Bravo - Foto: Leo Aversa leo@leoaversa.com

Uma guitarra fantasmagórica pontua o escuro como se abrisse frestas minúsculas em uma cortina que retém a claridade da rua, como se cada nota abrisse um pequeno furinho e deixasse aos poucos a luz entrar. Mas não é dia, é noite e a luz que entra, tingida de vermelho pelos letreiros luminosos e faróis de carros e motos, deixa o clima noturno com um ar apaixonado e latino, escancarado por um acorde derramado, que abre espaço para a bateria e o baixo entrarem sorrateiros, lentamente criando um clima tenso e solene, rasgado pela voz sedutora e sinuosa de Marya Bravo nas onze canções autorais inéditas.

“Outra vez o coração se enganou, confiou em um eterno talvez” – e assim a atriz e cantora anuncia, logo na faixa de abertura, emotiva e concisa, o título de seu quarto disco, seu reencontro com a música. “Eterno Talvez” é fruto do que ela achava que seria o final de sua carreira de artista com uma peça de teatro que aceitou fazer por motivos pessoais que a trouxeram de volta para o seio dos sons. Não por isso carrega tantos sentimentos conflituosos e uma musicalidade que intersecciona gêneros musicais tão diferentes num encruzamento ao mesmo tempo dramático e mágico, em que ela ergue sua cabeça para encarar de volta e de frente sua primeira paixão: a música.

Filha de Zé Rodrix e Lizzie Bravo, ela já vinha pensando, antes da pandemia, em abandonar a carreira de artista, que abraçou ainda na infância, para dedicar-se a outras atividades. Queria afastar-se dos palcos e tornar-se nômade digital, quando, depois do período pandêmico, recebeu um convite para participar de um musical sobre o Clube da Esquina. Dirigido por Dênis Carvalho e com direção musical de Kassin, a peça “Clube da Esquina – Sonhos Não Envelhecem” mexeu com o lado emocional da cantora, porque Milton Nascimento havia sido o padrinho de casamento de seus pais.

Ao aceitar fazer a peça, que lhe rendeu duas indicações inéditas de melhor atriz em dois prêmios, Marya reconectou-se com sua carreira musical, parada há mais de dez anos, quando lançou o disco “Comportamento Geral – As Canções da Resistência”, em 2014. Embora sua trajetória como atriz esteja comumente ligada à música (ela fez carreira participando de musicais como “Mimosas da Praça Tiradentes” e “Beatles num Céu de Diamantes”) mal sabia que o espetáculo que aceitara fazer por motivos familiares a reconectaria com a carreira que achava que já havia se despedido e que aquela nova convivência musical acendeu a paixão pelo fazer música que achava que havia apagado de vez.

Nobru, Marya Bravo e Dony Von – foto Leo Aversa

Chamou seu parceiro Nobru, integrante da lendária banda de hardcore carioca Cabeça e atualmente no Planet Hemp e que já trabalhou nos seus três discos anteriores – o autoral “Água Demais por Ti” (2009), “De Pai Pra Filha – Marya Bravo Canta Zé Rodrix” (2011) e o já citado “Comportamento Geral” (2014) – para fazer o que achava que seria um último show no Rio de Janeiro, em cima do repertório do disco de 2014, quando cantou músicas de resistência à ditadura militar de 1964. Mas o reencontro com o velho parceiro mostrou que havia um outro caminho a ser percorrido – um novo caminho.

“Eterno Talvez” começa há dois anos, quando ela passa a dividir sua semana entre a temporada da peça em São Paulo e o que seria seu novo disco no estúdio que Nobru tem na Gávea no Rio de Janeiro – chamado Graveá, do qual se tornaria sócia em seguida. O músico e produtor, que já foi casado com a irmã de Marya e que ela considera mais do que um parceiro, mas da família, logo percebeu que o trabalho poderia enriquecer com a presença de outro amigo, o músico Dony Von, velho conhecido da cena independente carioca, que já havia tocado com Marya e que atualmente toca no Muzgo (com o Nobru) e que já substituiu o baixista do Planet Hemp em alguns shows, por indicação do amigo que toca na banda. Logo os três se tornaram uma unidade, compondo músicas coletivamente e perseguindo uma estética definida por Nobru, que tinha uma visão.

“Ele me falava: tem duas esquinas, numa delas tem uma banda de hardcore, de punk rock, e na outra esquina tem uma cantora cantando com um piano”, lembra Marya, usando esta metáfora, tão bem conhecida dos três, como ponto de partida. E entre guitarras e beats de música eletrônica, aos poucos foram acrescentando piano, violão e até cordas, chegando ao desplante de entrarem no estúdio com um violino e um violoncelo para tocá-los sem nunca ter feito isso. Não se deram bem com o violino, mas conseguiram notas longas no violoncelo, que gravaram aos pedaços e colocando-os nas canções.

Mas a esquina cacofônica descrita por Nobru é mais estética que sonora. “Eterno Talvez”, influenciado tanto pelo disco ao vivo do grupo inglês Portishead, pelas imersões sonoras da cantora islandesa Björk e pela crueza acústica do trio paulista Metá Metá, o álbum busca uma sonoridade que ao mesmo tempo consegue ser tão densa e crua quanto delicada e suave. Não tem nada de barulhento ou pesado – a não ser o tema de algumas canções, quase todas falando sobre crises existenciais, relacionamentos conflituosos e tensões latentes. Sonoramente está próximo das canções de cabaré, do jazz dos anos 40, das canções da era de ouro do rádio, da música eletrônica downtempo e do hip hop instrumental, equilibrando-se entre universos tão distantes quanto cordas, guitarras distorcidas e theremins. O ruído do punk (que Marya bem conheceu quando morou em Nova York nos anos 80 e frequentava o clássico CBGB’s) vem muito mais como pressão estética do que como barulho ou agressividade.

“Eterno Talvez” é um disco de trip hop e, como tal, nunca transborda, sempre deixando a tensão limítrofe como régua emocional da tensão passional que atravessa todo o álbum, de forma concisa, ao mesmo tempo bela e trágica, como o olhar desafiador que a cantora lança ao ouvinte na quente capa do álbum. Traz onze canções autorais inéditas feitas por ela ou em parcerias e uma surpresa: uma canção não-registrada do pai Zé Rodrix, a “Faca no Peito”, descoberta a partir do contato com a irmã, a também cantora Barbara Rodrix.

Alexandre Matias é jornalista, curador de música e diretor artístico e comanda o site

www.trabalhosujo.com.br

Músicas

1 · Eterno Talvez (Marya & Dony)

2 · À Deriva (Marya & Dony & Nobru)

3 · Avisei (Marya & Dony)

4 · Tudo Por Acaso (Marya & Dony)

5 · Quem É Que Vai? (Marya & Dony & Nobru)

6 · Braços Abrigo (Marya & Dony & Nobru)

7 · Ai Quem Dera (Marya & Dony & Nobru)

8 · Faca No Peito (Zé Rodrix)

9 · Loucura Confirmando (Marya)

10 · Rainha Do Nada (Nayana Carvalho)

11 · Vai Acontecer (Marya & Nobru)

Ficha Técnica

Produzido por Nobru e Dony Von

Mixado por Pedro Garcia

Masterizado por Nobru

Produção executiva de Marya Bravo

Gravado nos estúdios cariocas Graveá e Cantos do Trilho por Nobru, Pedro Garcia e Elton Bozza de novembro de 2022 a novembro de 2024

Show“Eterno Talvez” – Marya Bravo

Datas: 21/05 e 28/05, quartas, às 20h

Local: Audio Rebel (Rua Visconde de Silva, 55 – RJ)

Preço: 25,OO https://www.sympla.com.br/evento/lancamento-de-album-eterno-talvez/2960550

Mergulhe no mundo de Marya Bravo:

Instagram – https://www.instagram.com/maryabravo/

YouTube – https://www.youtube.com/maryabravo

Facebook – https://www.facebook.com/p/Marya-Bravo-100042936592441/

TikTok – https://www.tiktok.com/@maryabravo7

X – https://x.com/maryabravo

Related posts

Mauro Diniz grava áudio visual em comemoração aos 50 anos de carreira, na próxima terça-feira (21), em Vargem Pequena

“Grandes Compositores Brasileiros”, de Rogério Guimarães chega ao Teatro Cândido Mendes

Roberto Menescal completa 88 anos no palco com Cris Delanno, em show de lançamento do álbum “Lado B da Bossa Nova”