Com cerca de 100 obras, exposição celebra os 60 anos de carreira de um dos mais importantes escultores da arte brasileira, sob a curadoria de Lauro Cavalcanti
Mostra inclui uma reprodução do ateliê do artista e obras manipuláveis pelo público, além de uma seleção pessoal de Ascânio MMM, que apresenta obras de se
A Casa Roberto Marinho celebra a produção de Ascânio MMM em Geometria inquieta, exposição inédita a ser inaugurada em 14 de dezembro de 2024, sob a curadoria de Lauro Cavalcanti. Com cerca de 100 trabalhos que percorrem a trajetória artística de seis décadas de um dos mais importantes escultores da arte brasileira, a mostra inclui uma seleção pessoal de Ascânio, que apresenta obras de seu acervo particular em diálogo com peças da Coleção Roberto Marinho, estabelecendo relações plásticas entre os artistas contemporâneos que marcaram seu percurso.
“Ascânio MMM é um artista cuja obra reúne várias influências e questões centrais na arte brasileira e latino-americana dos últimos 60 anos, e esta exposição mapeia o percurso trilhado por ele. Sua produção mantém uma enorme coerência interna em domínios como o construtivismo, arquitetura, verdade dos materiais, dialética entre projeto e execução, tridimensionalidade e composição planar. A vontade da forma, inabalável a modismos, impulsionou o artista com suas peças precisas e surpreendentes, na retomada de um ideal construtivo. Nesta rota, o uso contínuo da geometria não lhe aboliu o acaso nem a poesia”, analisa Cavalcanti, diretor-executivo da Casa Roberto Marinho.
Nascido em Fão, Portugal, Ascânio imigrou para o Rio de Janeiro aos 17 anos, já com o desejo de estudar arquitetura. Mas foi na escultura que encontrou a linguagem para se comunicar com o mundo: “A escultura, para mim, é uma paixão, um modo de fazer poesia através do objeto. Seria impossível não fazer algo que grita dentro de mim”, declara o artista, que se diz um carioca nascido em Portugal.
Aos 83 anos, ele mantém a energia que o leva diariamente ao ateliê, dando continuidade a uma produção vigorosa que teve início nos anos 1960. A exposição permite um olhar retrospectivo sobre as seis décadas de percurso artístico de Ascânio, orientando-se pela evolução dos materiais e técnicas utilizados. Ele, no entanto, rejeita o termo “retrospectiva”: “Para mim, esse conceito se aplica quando o artista já encerrou a sua obra”.
Pulsão construtiva
No percurso de Ascânio, o raciocínio arquitetônico sempre esteve presente e Geometria Inquieta revela a pulsão construtiva desde as raízes em Portugal. Imagens que remetem a essas origens incluem a casa de férias em Ofir, projetada pelo arquiteto português Fernando Távora (1923–2005). Através do contato com essa construção modernista, o escultor percebeu que a arquitetura era o caminho para liberdade, porque através dela podia dominar o espaço e interagir com a luz e a sombra.
O uso da madeira como matéria-prima remete à tradição da construção naval no estaleiro de sua família, em Fão. A intimidade com as ferramentas de marcenaria abriu caminho para que fosse esse o meio de colocar no mundo os objetos que desejava. “No quintal de casa, eu aproveitava os pequenos pedaços de madeira que encontrava nas marcenarias. Com eles comecei a fazer minhas primeiras peças”, relembra o artista.
No primeiro grande salão da Casa Roberto Marinho, a escultura Fitangular Longo (1984) revela a imponência do material em sua forma natural, evidenciando uma técnica de colagem de ripas que cria uma gradação de tons e dá corpo à peça. Com mais de seis metros de comprimento, a escultura domina o espaço, interrompendo o diálogo visual entre o interior e o jardim através das amplas janelas de vidro.
Na sala seguinte, a exposição retorna ao início da carreira, apresentando desenhos volumétricos, esculturas de parede da série Composição e algumas esculturas já pintadas de branco, antecipando a identidade estética que consolidaria o trabalho de Ascânio.
Neste espaço também está a obra mais antiga da mostra, Escultura ENBA (1964), produzida em gesso, arame e sisal. O título, que faz referência à Escola Nacional de Belas Artes, remete ao contexto em que a peça foi criada, quando Ascânio cursou dois anos, entre 1963 e 1964, antes de ingressar na faculdade de Arquitetura. Embora distinta em termos materiais, a obra já traz o eixo como elemento estrutural, segundo aponta o crítico de arte Paulo Herkenhoff, no livro Poética da Razão.
Ainda no térreo, referências e influências que atravessaram o percurso artístico de Ascânio surgem numa seleção de obras da Coleção Roberto Marinho realizada por ele. “Este convite dá continuidade à tradição das individuais contemporâneas do Cosme Velho, onde artistas convidados não apenas exibem suas obras, mas também interagem e ressignificam o acervo da Casa”, explica o diretor Lauro Cavalcanti.
Ao retomar a prática curatorial – exercida entre 1983 e 1990 na Galeria dos Artistas, que funcionou no Centro Empresarial Rio, na Praia de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro – Ascânio faz escolhas pautadas pela sua memória afetiva, trazendo à tona vivências pessoais. De um lado, homenageia os que influenciaram o início de sua carreira: Lygia Clark, com suas superfícies modulares, Amílcar de Castro e Franz Weissmann são alguns dos nomes que lhe impactaram, seja pela apropriação da forma geométrica, pela transgressão estética ou pelo uso do material.
Por outro lado, Ascânio destacou parceiros da vanguarda dos anos 1960 e 1970, que ajudaram a construir uma arte inovadora e transformadora. Entre esses contemporâneos e companheiros de juventude estão Antonio Manuel, Artur Barrio, Cláudio Paiva e Raymundo Colares, representados em obras pertencentes à coleção particular de Ascânio e sua esposa, Ana Maria Monteiro. Lygia Pape, amiga próxima e influência fundamental na sua experiência neoconcreta, também está presente com uma obra da série Tecelares (1959).
No segundo andar, o público entra em contato com o processo criativo e construtivo do escultor. Sua formação em arquitetura se reflete nas pequenas maquetes – ou “projetos”, como prefere chamar – que funcionam como miniaturas de futuras obras em maior escala.
Miniaturas como as que compõem Estudo para Fitangulares, exibido no hall, ocupam as estantes do ateliê de Ascânio, ao lado de fotografias e objetos que carregam histórias e memórias. Esse espaço de trabalho, onde ele testa materiais e planeja cada etapa de seu processo, é recriado na exposição, evidenciando o quanto o cotidiano do ateliê é essencial em sua prática artística.
Presente em todas as fases de produção, Ascânio contraria a ideia de uma obra meramente intelectual, aproximando-se de uma prática construtiva, independente do material que utiliza. “A manipulação do material, a descoberta de novas possibilidades – tanto na madeira quanto no alumínio, no ato de cortar, furar, entre outros – têm sido fundamentais na pesquisa e na abertura de novos caminhos criativos”, reflete Ascânio em uma entrevista ao curador paulistano Paulo Miyada.
Da madeira ao alumínio
Três salas da exposição são dedicadas a uma cronologia dos materiais, ilustrando o desenvolvimento técnico e estético da obra de Ascânio MMM. Essa disposição das peças por fases evidencia também a importância do público em sua concepção, uma vez que as esculturas dialogam com a escala humana e ganham vida a partir da interação visual do espectador, revelando novas dimensões conforme o ângulo de observação.
Obras como Escultura 21 (1978/2010), Escultura 2.6 (1979/2000) e Espaço 4 (1968) capturam a fase em que Ascânio aprofundou sua experimentação com volumes por meio de esculturas em madeira pintadas de branco, nos anos 1970. Através da técnica de empilhar, deslocar e torcer as ripas em torno de um eixo central, ele criou peças que sugerem movimento e um jogo de luz e sombra.
Já ao longo dos anos 1980, o escultor passou a explorar a madeira em sua forma natural, trocando a neutralidade do branco pelas variações de textura e cor de espécies nativas, como freijó, maçaranduba, ipê, pau-marfim, jacarandá, pinho e cedro. Em esculturas de parede da série Relevo, o artista integra elementos pintados de branco e madeira aparente, criando um diálogo entre as linguagens. Nas séries Formação e Piramidal, a riqueza de cores naturais se alinha ao rigor geométrico.
O alumínio passou a fazer parte do trabalho de Ascânio quando ele foi desafiado a criar grandes obras públicas e necessitou de um material mais resistente às intempéries. As monumentais obras públicas que utilizam o alumínio, como Módulo 6.5 (1970-1997) e Módulo Rio (1971-1983), ambas instaladas em áreas urbanas do Rio de Janeiro, são representadas na exposição por desenhos e projetos. Também integram a mostra obras da série Quacors – malhas compostas por perfis de alumínio quadrados, cortados com 2cm, unidos por parafusos e porcas, e cobertos por placas de várias cores, criando composições geométricas que dialogam com a pintura.
Em outra sala, estão expostas as esculturas articuladas de Ascânio, concebidas para interação direta com o público. Retomando o espírito lúdico das caixas móveis de 1968-69, criadas para manipulação pelo espectador, destaca-se a imponente Qualas 11 (2008), uma obra composta por quadrados em alumínio unidos por aço inox que formam uma trama fluida e sonora, suspensa no teto. A maleabilidade do material e o movimento sutil das peças convidam o visitante a explorar a instalação de perto, criando uma experiência entre materialidade e som.
Na última sala, uma cronologia estruturada pela pesquisadora Ileana Pradilla Ceron traça a trajetória de Ascânio.
Ao ar livre, nos jardins da Casa Roberto Marinho, a escultura permanente Flexos 6 (2007), instalada desde a inauguração do instituto em abril de 2018, é acompanhada por três obras da série Prismas – composições em grade produzidas a partir de perfis de alumínio com estruturas transparentes. A maior delas, Prisma 13, foi concebida especialmente para a mostra, para ser integrada ao jardim originalmente projetado por Burle Marx, abrigando espécies da Mata Atlântica: “O diálogo da escultura com a floresta em volta é estabelecido através da transparência e sua escala permite um bom passeio visual nos diversos níveis do terreno”, observa Cavalcanti.
Geometria Inquieta é acompanhada por um livro organizado por Lauro Cavalcanti, com projeto gráfico de Fernando Leite. Reunindo 16 textos críticos sobre a obra do escultor, a publicação amplia o alcance da exposição e compila análises valiosas de Paulo Herkenhoff, Frederico Morais, Lygia Pape, Fernando Cocchiarale, Paulo Miyada, Luisa Duarte e Guilherme Wisnik, entre outros, oferecendo uma visão abrangente e histórica da produção de MMM e sua influência na arte brasileira.
CASA ROBERTO MARINHO
A Casa Roberto Marinho foi aberta ao público como instituto cultural sem fins lucrativos em 28 de abril de 2018, no Cosme Velho, Zona Sul do Rio de Janeiro. A instituição foi integralmente criada com recursos próprios da família, de forma independente, sem qualquer incentivo ou uso de lei de isenção fiscal. Concebida para promover o conhecimento através da arte e da educação, tornou-se um centro ativo de referência em arte brasileira, sob a direção do arquiteto, antropólogo e curador Lauro Cavalcanti.
O acervo reunido ao longo de seis décadas pelo jornalista Roberto Marinho (1904-2003) é especializado em modernismo brasileiro dos anos 1930 e 1940, e abstração informal da década de 1950. O belo conjunto de cerca de 1.400 peças cadastradas – entre pinturas, esculturas, gravuras, objetos e desenhos – também recebeu trabalhos de estrangeiros, como Marc Chagall (1887-1985) e Salvador Dali (1904-1989).
Com mais de 1.200 metros quadrados de área expositiva, o projeto conta com sala de cinema, além de cafeteria e livraria especializada em publicações de arte. O jardim, originalmente projetado por Burle Marx com espécies da flora tropical, é um prolongamento da Floresta da Tijuca.
SERVIÇO:
GEOMETRIA INQUIETA | Ascânio MMM
Curadoria: Lauro Cavalcanti
Abertura: 14 de dezembro de 2024, às 12h
Encerramento: 30 de março de 2025
Instituto Casa Roberto Marinho
Rua Cosme Velho, nº 1105 – Rio de Janeiro | RJ
Tel: (21) 3298-9449
Visitação: terça a domingo, das 12h às 18h
(Aos sábados, domingos e feriados, a Casa Roberto Marinho abre a área verde e a cafeteria a partir das 9h.)
Ingressos à venda exclusivamente na bilheteria:
R$10 (inteira) / R$5 (meia entrada)
Às quartas-feiras, a entrada é franca para todos os públicos.
Aos domingos, “ingresso família” a R$10 para grupos de quatro pessoas.
A Casa Roberto Marinho respeita todas as gratuidades previstas por lei e é acessível a pessoas com deficiência física.
Estacionamento gratuito para visitantes, em frente ao local, com capacidade para 30 carros.