Filha da periferia e movida pela batida do tambor que pulsava e vibrava todos os finais de semana, Ivi Mesquita construiu uma trajetória marcada pela arte, pela resistência e pela coragem de transformar desafios em conquistas.
Sua história se entrelaça com a cultura afro-brasileira e ganhou grande visibilidade no Carnaval — um espaço que, para ela, sempre foi mais do que folia. É território de afirmação, de respeito aos que vieram antes e de luta pelo protagonismo das pessoas negras nos lugares de destaque e reconhecimento em suas áreas de atuação.
Hoje, além de ser uma das figuras mais reconhecidas do Carnaval, tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro, Ivi é também empresária e líder à frente de projetos que valorizam a cultura negra e fortalecem o movimento de protagonismo para pessoas como ela.
No Mês da Consciência Negra, Ivi reforça que olhar para trás com respeito e para frente com propósito diz muito sobre a sociedade antirracista que deseja construir — uma sociedade em que as novas gerações de pessoas negras possam ocupar todos os espaços, permitindo que a caneta deslize entre seus dedos com dignidade, orgulho e poder.
Entrevista
Ivi, sua história começa na periferia e ganha o mundo através do carnaval. Como essa vivência te moldou como mulher e como profissional?
Ivi Mesquita: A periferia me formou. Eu sou cria das de ações sociais de políticas públicas e oficinas culturais que hoje foram fechadas. Foi ali que aprendi o valor da força coletiva, da criatividade e da fé. Entendi que, mesmo quando há escassez, a gente cria o nosso próprio caminho. No meu caso foi a dança afro brasileira me moldou como artista responsável, de amadora a profissional.
O carnaval chegou de forma mais efetiva aos 18 anos quando vesti meu primeiro biquíni. Foi a minha presença com esse corpo, com essa voz, a minha escola e o meu grito de liberdade me mostrando que o corpo negro é símbolo de poder e resistência. Foi lá em
1998, no palco Elis Regina, no Anhembi que nasceu uma nova versão de Ivi Mesquita, sambista desse chão e dessa batida que nunca deixou de pulsar dentro de mim.
O que significa ancestralidade na sua trajetória?
Ivi: A ancestralidade é o que me guia. É a minha bússola.
Carrego comigo a força da minha bisavó, que tive o privilégio de conhecer e conviver até sua passagem. Ela era de Aparecida do Norte, e por isso sou profundamente devota da minha santinha. Trago também comigo a presença das minhas avós, dos meus avôs e do meu pai, que segue muito presente na minha rotina. Quando passo por momentos de vulnerabilidade, peço que ele me olhe e sempre sinto essa conexão. Mas a minha ancestralidade vai além do sangue. Sinto que todas as mulheres que vieram antes de mim como madrinha Eunice, tia Ciata, mãe Creuza, dona China, entre tantas outras que abriram caminhos mesmo quando quase não existiam portas. Elas escancararam essas passagens para que hoje pudéssemos estar aqui, falando com orgulho desse lugar que é muito nosso. O samba é preto.
Cada passo que dou, seja no samba, no palco ou no empreendedorismo é para honrar essas memórias. Quando eu caminho, não caminho sozinha. Carrego um exército de mulheres que me ensinaram a resistir com amor e dignidade.
O carnaval, além da festa, é também um espaço de resistência. Como você enxerga esse papel hoje?
Ivi: O Carnaval é o maior ato de resistência do povo negro. Isso é fato!
É nele que mostramos nossa arte, nossa fé, nossa inteligência e, sobretudo, nossa alegria, que também é política. Como escreveu a autora Juliana Borges em 2021, “quando uma pessoa negra está feliz, é algo muito revolucionário”.
Mas é importante lembrar quem construiu esse chão: as mulheres negras das comunidades, as baianas, costureiras, passistas, as mães de santo e tantas outras mulheres de fé.
Hoje o Carnaval mudou, e é bonito ver novas presenças. Mas precisamos cuidar para que essa diversidade não apague a nossa história. O protagonismo negro não pode ser omitido, porque foi ele que manteve o Carnaval vivo até hoje.
Cada tambor, cada ala, cada fantasia diz: “Nós estamos aqui, e somos parte viva da história do Brasil.” E é por isso que, independentemente da idade ou do tempo, eu sigo sambando e encantando para manter essa chama acesa.
Ivi Mesquita
Hoje você também é uma empresária. Como foi ocupar esse espaço, ainda tão desigual para mulheres negras?
Ivi: Na verdade, ainda continua sendo desafiador. A gente precisa estar o tempo todo dando carteirada e provando a nossa competência. Mas eu aprendi a criar meus próprios espaços e a me cercar de pessoas que acreditam na potência da mulher negra.
Empreender, para mim, ainda é algo desbravador. É também um ato político, de permanência e resistência ao longo desses anos, muitas vezes em um caminho único e solitário.
Mas a minha força está em abrir portas, gerar oportunidades e mostrar que é possível transformar. Cada entrega me encanta, e é por isso que sigo, há 26 anos, empreendendo.
Quando falamos de consciência negra, quais pautas você considera mais urgentes hoje?
Ivi: A principal pauta é o acesso à verdade — conhecer e reconhecer a verdadeira história do nosso povo. É fundamental fazer cumprir a Lei nº 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas, e a Lei nº 11.645/2008, que ampliou essa obrigatoriedade para incluir também a história e a cultura indígena. Essas leis são a base para uma educação antirracista e multicultural no Brasil.
Professores e instituições precisam se comprometer de fato com essa construção, porque é a partir dela que teremos grandes transformações no futuro.
Outra pauta urgente é garantir portas abertas em todos os espaços, sem julgamentos.
Precisamos assegurar que pessoas negras tenham oportunidades reais de estudo, trabalho e empreendedorismo com mais acesso e menos barreiras.
Mas também é essencial olhar pra dentro: resgatar nossa autoestima, valorizar nossa história, nosso cabelo, nosso jeito, nossa voz.
Consciência Negra é sobre enxergar e se orgulhar de quem somos, mesmo em um sistema que tentou nos fazer acreditar o contrário.
Que mensagem você deixa para as jovens negras que se inspiram em você e sonham com seus próprios caminhos?
Ivi: Sorriam com verdade. Acreditem em si mesmas, sejam firmes, organizadas e façam o que amam, porque isso abre infinitas possibilidades. E quando as oportunidades chegarem, estejam prontas para vivê-las com confiança e propósito. Nunca desacreditem, nem por um minuto, do poder que existe em vocês.
Tenham em mente uma reflexão africana que eu aprendi e gosto muito de compartilhar: o provérbio “Sankofa”, que significa “volte e pegue”.
Nunca é tarde para voltar e buscar aquilo que ficou esquecido. É sobre aprender com os erros do passado, trazer essa consciência para o presente e, assim, construir um futuro brilhante.
Transformem a dor em criação, o medo em movimento. O mundo precisa da força e da sensibilidade das mulheres e dos homens negros.
A gente não está mais pedindo espaço — a gente está ocupando. E é pra ficar!
Mais do que uma história individual, a trajetória de Ivi Mesquita reflete a de tantas outras mulheres negras que, com coragem, beleza e criatividade, seguem abrindo caminhos.
Em cada passo, ela reafirma que o Carnaval é mais que cultura: é resistência, é identidade, é consciência viva.