O custo social da falta de acesso á cultura e a educação

por Luiz Costa
O custo social da falta de acesso á cultura e a educação

O uso da palavra cultura nasceu muito antes de editais públicos, promessas de campanha ou manchetes de qualquer mídia. Vem do latim colere (cultivar, cuidar e proteger), na Roma antiga o termo cultura agri  era o ato fundamental de preparar a terra. Cicero filósofo e orador romano entre 106 a.C. e 43 a.C levou este verbo para outro patamar metafórico ao falar cultura animi, o “cultivo do espirito”, lembrando que Cicero não se referia ao espirito no sentido religioso, místico ou sobrenatural, mas sim para a parte intelectual, moral e sensível do ser humano, naquilo que realmente  nos faz conscientes, com plena capacidade de “julgar”, perceber, criar e agir, nos ajudando em nossa vivencia e visão de mundo. Pois assim como a terra precisa ser adubada para dar bons frutos, assim o ser humano precisa ser nutrido pelo conhecimento, pelas artes, pelos costumes e pela convivência.

Dai surgiu a expressão “ pessoa culta” alguém cujo o espirito foi cultivado.

A questão inevitável que bate em nossa consciência ou pelo menos deveria é : estamos cultivando bem esse terreno comum? Estamos realmente produzindo de forma diversificada frutos para todos, ou apenas para alguns poucos?

Cultura, senso de pertencimento e a falsa ideia de exclusividade

Infelizmente ainda carregamos uma visão errônea e distorcida da cultura, talvez pelo esse sentimento de falta de pertencimento que se enraizou em muitos de nós.  Livros clássicos, teatros municipais, grandes museus  ou exposições artísticas de todos os nichos, mais que parecem exigir uma senha social invisível.

Pierre Bourdieu (1930-2002), foi um influente sociólogo e intelectual francês, amplamente considerado um dos pensadores mais importantes do século XX, explicou como essa percepção se enraíza: o conhecimento pode virar capital cultural, um tipo de passe, de moeda simbólica que distingue os “cultos” dos “não cultos”. Não se trata de portões ou portas fechadas fisicamente, mais de barreiras ou murros subjetivos profundos e cruéis, pois negam ao individuo o prazer a vivenciar o novo e o seu desenvolvimento.

Quantas pessoas passam toda sua existência acreditando que “não pertencem” a esses espaços? Que não vão entender, ou vão passar vergonha, pois estes ambientes e experiencias pertence quase que exclusivamente a algum grupo social distante e inalcançável.

O apartheid cultural e silencioso, persistente e deformador, seu impacto vai muito além do entretenimento ou lazer.

A cultura é a lente que amplia o mundo, cria repertório e rompe barreiras para se compreender melhor a vida.

A cultura desperta a inteligência, traduz a experiência , da liberdade a transformação individual e coletiva. Devemos dar acesso a todos, pois quando alguém acredita mesmo que erradamente que não merece ou não tem direito a ela, perde-se muito mais só que um espetáculo; perde-se a possibilidade do indivíduo, da pessoa e do ser humano ser mais.

O paradoxo moderno quando a cultura vira mercadoria

Em nenhum outro tempo da História houve tanto conteúdo disponível entre filmes, textos, músicas e todo tipo de informação, tudo a um clique de distância. Damos mergulhos rápidos e “pensamos” que já sabemos de tudo.

A Escola de Frankfurt já alertava que a indústria cultural transformaria a arte em um produto padronizado e sem originalidade, apenas com um anseio de moldar nossos desejos, nosso gosto nos entregando versões sempre similares do que acreditam que queremos. A diversidade cultural se estreita, a ousadia criativa perde espaço  e nosso repertório se torna cada vez mais igual e sem as perguntas que desenvolvem a sociedade.

A cultura virou conteúdo e o conteúdo virou mercadoria.

Hannah Arendt –  Filósofa política alemã-judia (1906-1975), já distinguia claramente: cultura desafia, inquieta, engrandece; entretenimento apenas ocupa  muitas vezes só nos adormece, ao nos anestesia.

Guy Debord – Filósofo e cineasta francês (1931-1994), ele identificou a transformação para “sociedade do espetáculo”, já não consumimos cultura, mas uma imagem, uma versão dela. Tiramos selfies diante de obras sem realmente vê-las, adquirimos livros para decorar instantes com o pretexto e desejo de  nos tornar “cult’, a experiência profunda e o deleite que quem com esta experiência se torna cada vez mais em um engodo por um simulacro de vida.

A frase-chave de Debord:

“Tudo que era diretamente vívido se mudou numa representação”

O impacto social da falta de acesso à cultura ou da falsa sensação de acesso

Uma sociedade empobrecida, vulnerável e facilmente manipulável e o que colhemos quando temos uma combinação de exclusão simbólica e mercantilização inescrupulosa somente da cultura, como um produto. Inevitavelmente gera insumos de uma cultura deturpada  e alienante. Pois quando a capacidade de interpretar o mundo diminui, o repertorio cultural é limitado, o senso critico enfraquece as suas “armas” como ser pensante e dono da sua alma, diminui consideravelmente.

Desculpem o devaneio, este trecho me lembrou o poema de William Ernest Henley (poeta inglês, 1875)  “Invictus” significa “invencível” ou “inconquistável” em latim.

“Eu sou o mestre do meu destino, eu sou o capitão da minha alma.”

A cultura e um direito fundamental de todos, não um artigo de luxo ela e tão essencial quanto a saúde, segurança ou educação. Investir em cultura e investir em desenvolvimento integral para toda sociedade e acredita dar no florescimento do desenvolvimento do seu próprio povo. E fazer do acesso á cultura um solo fértil sobre o qual todos possam crescer.

Não podemos deixar de honrar os que cultivam a cultura para todos

Apesar de tantos obstáculos, de tantas barreiras sendo elas simbólicas, institucionais ou econômicas, há sempre quem siga persistindo e cultivando o espirito coletivo com firmeza e dedicação, sem esmorecer. São educadores, mestres de tradição, escritores, bibliotecários, movimentos comunitários, quilombolas, indígenas, artistas de todos os segmentos e o cidadão “comum” que mesmo sem saber propaga ideias e sabedorias populares que tanto enriquecem a nossa cultura. E mesmo com poucos recursos fazem da cultura um ato de resistência diário, levam livros, musica, dança, teatro, memoria e identidade cultural a territórios onde o Estado raramente chega. Eles são os agentes propagadores, transformam praças em palcos, vielas em cenas, escolas em territórios que borbulham criação.

Do Norte ao Sul, do litoral ao sertão, esses “missionários” da diversidade cultural mantem firmes os alicerces e vivas as raízes que moldam o Brasil.

No Norte temos o Festival de Parintins, o Carimbó, o Cirio de Nazaré e o Cairé reafirmam a força da floresta. No acre , a cultura indígena e ribeirinha molda identidades.

No Nordeste, o Maranhão com seu  Bumba-meu-boi, o Cacuriá e o tambor de crioula ecoam a força ancestral do país. No Ceara, influencias europeias, africanas e indígenas se entrelaçam em uma cultura mestiça vibrante. Na Paraíba, o são João de Campina Grande ilumina o calendário popular, em Alagoas, caboclinhas, pastoril e reisado seguem firmes. Pernambuco  ensinando o mundo o ritmo do Maracatu e a energia do frevo sem falar de seus bonecos, enquanto a Bahia preserva o samba de roda e o axé, verdadeiras forças criadoras.

No Sudeste, o Rio de janeiro resiste com seu carnaval, samba de roda e bossa nova; Minas mantém vivas a culinária saborosa e reconfortante, o Congado e a Folia de Reis; o Espírito Santo celebra o Dourado e a Festa da Penha; São Paulo guarda tradições como a Dança do Caiapó e a Festa do Divino.

Este Brasil intenso, vibrante, criativo, com todas essas manifestações culturais ratificam que apesar das dificuldades, milhares de fazedores de cultura, muitas vezes invisíveis as estatísticas dedicam suas vidas a manter, reinventando e compartilhando a chama da arte , da cultura e do conhecimento para quem nunca teve acesso,

Lembrá-los por um minuto é reconhecer que são eles que seguram a nossa humanidade que esta por um fio. É reafirmar que enquanto houve quem acredita e lute ´para que a cultura seja um direito e não um privilégio,

O Brasil seguirá multicultural, terreno fértil e com colheita abundante.

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