Próteses de Proteção: O Mito da Travesty Contra o Carro-Falo

Fotos de Rodrigo Menezes

Travestis não surgem no palco — elas evocam mitos e escrevem histórias. De 4 a 27 de julho de 2025, o Espaço Cultural Municipal Sergio Porto, receberá o solo teatral “Próteses de Proteção: O Mito da Travesty Contra o Carro-falo”, escrito, idealizado e protagonizado pela atriz e escritora Maria Lucas, com direção e dramaturgia de Wallie Ruy, direção de movimento de Ymoirá Micall, supervisão dramatúrgica de Daniel Veiga, preparação vocal de Soraya Ravenle e trilha sonora original composta por Navalha Carrera. As apresentações acontecem sexta e sábado, às 20h; e domingo, às 19h. A entrada é grátis e os ingressos serão distribuídos a partir de 1h antes. Haverá sessões extras nos dias 19 e 26 de julho, sábado, às 17h.

O espetáculo é uma invenção mitológica contemporânea, uma travessia poética construída a partir do ensaio “Próteses de Proteção”, texto autobiográfico escrito por Maria Lucas após um episódio real de violência vivido pela artista. O texto foi premiado no concurso de ensaios da Revista Serrote, promovido pelo Instituto Moreira Salles, em 2020, e agora renasce como um rito coletivo e fabulação épica travesti.

Com uma equipe formada quase que inteiramente por pessoas LGBTQIA+ e com pessoas trans e travestis nos principais cargos criativos, a adaptação é contada com o auxílio de projeções e Maria Lucas vai alternando personagens numa mitologia que ela mesma constroi, ainda que fantástica, mas atravessada por realidades concretas: transfobia, apagamento, violência e luta por dignidade.

Contemplado pelo edital Pró-Carioca, da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura do Rio, a peça se passa numa “cisdade” repleta de “transeinstas”. Lá, uma menina tem seu caminho interrompido por um carro-falo — entidade enviada pelo “deus-máquina dos homens” para violentar meninas. Após o ato, ela se refugia numa caverna, onde permanece por sete mil anos. Lá, ela vive o ryto da rebelião por um coro transcestral de mil e uma travestis e sai da caverna transformada em uma nova existência. Deste rito, renasce como Dionísya — figura múltipla, armada com diversas próteses de proteção, incluindo o braço-caneta-lápis. Em posse de suas próteses, ela escreve sua própria história e volta à cisdade para enfrentar o carro-falo.

Da dor à dramaturgia: do corpo ao mito

“A escrita me empoderou e me colocou em contato com outras — do ontem, do hoje, do amanhã”, diz Maria Lucas. Mas transformar o trauma em obra exigiu tempo, ensaio e muitas mãos. O processo criativo teve início com experimentações cênicas apresentadas em festivais, e em espaços como o Sesc Ipiranga (SP) e o Teatro Café Pequeno (RJ), em formato de abertura de processo. “Eu improvisava, gravava, reescrevia. Foi nesse trânsito entre corpo e palavra que a dramaturgia nasceu”, explica.

Com orientação de Daniel Veiga e intensa colaboração de Wallie Ruy desde o início do processo, o texto foi se transformando em um solo. Em cena, Maria Lucas faz todas as personagens, além do coro das mil e uma travestis: “São muitas travestis em mim, sou uma só, mas também muitas”, completa.

Entre as figuras criadas estão Dionísya, a travesti que renasce da violência; Vedora, a anciã que vê passado, presente e futuro; Coriféia, uma mensageira dos acontecimentos que acontecem dentro da caverna e de tudo aquilo que está invisível aos olhos da “cisdade”; a escritora, que escreve a história em seu tempo, dentro da intimidade do seu quarto, com vista para o horizonte de sua janela; e a própria Maria, atuadora que compartilha com o público as fragilidades de se colocar diante deles.

Uma dinastia travesti em cena

O espetáculo marca a primeira direção de Wallie Ruy — artista com extensa trajetória no Teatro Oficina e de destaque em obras como o musical “Priscilla – A Rainha do Deserto” e “Wonder!! Vem pra Barra Pesada” — de travesti para travesti. Wallie também colabora na dramaturgia e vem acompanhando Maria desde o desdobramento do texto em ensaio cênico, e agora, no desenvolvimento do espetáculo.

“Quando Maria me convidou, eu entendi que não se tratava só de dirigir um espetáculo — era uma travesti dirigindo outra travesti. Isso só se justifica porque estamos falando de uma escavação em terra dura. A gente está desenterrando uma dinastia travesti que tentaram apagar”, diz.

A encenação proposta por Wallie mistura teatro, audiovisual, mitologia e performance com forte influência de sua formação no Teatro Oficina. Wallie é fundadora da Coletiva Wonder e esteve envolvida em projetos marcantes, como “Mistérios Gozósos”, “Bacantes”, “Roda Viva” (dirigido por Zé Celso) e especialmente “Wonder!! VEM PRA BARRA PESADA”, que foi indicado ao Prêmio Shell de Teatro em 2023. A parceria entre ela e Maria nasce do afeto e da admiração mútua, mas vai além: é também um movimento estético e político.

“A peça traz uma dramaturgia com a assinatura da Maria e com camadas: mito, corpo, autobiografia e linguagem. A Maria Lucas faz mil e seis personagens em cena. Isso exige coragem poética e política. Mas não queremos traduzir tudo. Queremos desvelar — como um tecido que se revela para quem se permite ver além das sombras, para todos os públicos”, diz Wallie, que comemora o fato de ser um espetáculo que reconta histórias travestis: “Estamos falando de um solo contado por uma equipe majoritariamente transvestigênere. Estamos plantando nossas histórias no aqui e agora”.

A equipe criativa também é composta pela coreógrafa e diretora de movimento Ymoirá Micall, fundadora da Cia. Sacana, e a compositora Navalha Carrera, conhecida por sua colaboração com Letrux e Jards Macalé, assina a trilha original. O figurino e o cenário são assinados por Teresa Abreu. A preparação vocal é de Soraya Ravenle, que também empresta sua voz à cena. E a direção de produção é de Juracy de Oliveira.

Um corpo-coro no palco

Em um dos momentos mais comoventes do espetáculo, Maria presta homenagem às travestis que vieram antes: Chica Manicongo, La Veneno, Claudia Wonder, entre outras. A reverência é feita em cena como um gesto ritual, um reconhecimento de linhagem.

“Não é sobre uma unidade, não é sobre viver sozinha — é sobre se entender parte de uma coletividade”, afirma Maria, que também ministrará a oficina Corpo-Coro durante a temporada. “Essa peça é sobre isso: somos mais quando estamos juntas”, diz Maria Lucas.

Para Maria, cria da Rocinha e artista periférica, fazer esse espetáculo é também um gesto de ocupação e reparação. “Quantas atrizes trans têm oportunidade de contar suas próprias histórias? De transformar um ato de violência em arte? Esse é um trabalho que eu não faço sozinha. O palco é habitado por mil e uma travestis comigo. Mas a mensagem é para todes”, conclui.

Sinopse:

Em uma cidade dominada por carros, uma menina é interrompida enquanto tenta seguir seu caminho, uma escritora inscreve memórias perdidas no tempo, uma ansiã revela-se através do fogo e uma mensageira manifesta os fatos através dos muros.

Ficha técnica:

  • Idealização, atuação e dramaturgia: Maria Lucas
  • Direção e dramaturgia: Wallie Ruy
  • Supervisão Dramatúrgica: Daniel Veiga
  • Direção de produção: Juracy de Oliveira
  • Iluminação: Luana Della Crist
  • Cenário e figurino: Teresa Abreu
  • Operação de câmera: Rodrigo Menezes
  • Direção musical: Navalha Carrera
  • Direção de movimento: Ymoirá Micall
  • Preparação vocal: Soraya Ravenle
  • Produção executiva: Bem Medeiros, Carmen Mawu Lima, Matheus Ribeiro e Rafaela Correia.
  • Assessoria de imprensa: Mario Camelo ( Prisma Colab )
  • Fotografia, filmagem e edição de vídeo: Rodrigo Menezes
  • Idealização: Maria Lucas
  • Realização: Pandêmica Coletivo Temporário de Criação

Serviço:

Próteses de Proteção: O Mito da Travesty Contra o Carro-Falo
Temporada: 04 a 27 de julho de 2025
Horários: sextas e sábados às 20h, domingos às 19h

Sessões extras: Nos dias 19 e 26 de julho, sábado, às 17h.
Local: Espaço Cultural Municipal Sergio Porto (Rua Humaitá, 163 – Humaitá, Rio de Janeiro)

16 anos. 80 minutos.

Grátis.
Ingressos: distribuição dos ingressos gratuitos 1h antes. Sujeito à lotação.

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