Uma exposição das cicatrizes, feridas e suturas de um corpo negro coletivo, assim é o espetáculo de dança Herdei meu corpo, produzido pela Paragogi Cultural, dirigido por rodrigo de odé e performado pela atriz, coreógrafa, animadora cultural e professora, Valéria Monã, que realiza circulação em espaços do Sesc RJ no mês de junho, com estreia no dia 5.
Como protagonista de uma história de sequestro e de resgates, ela instaura uma cena em que sua negritude absorve alguns termos do vocabulário pós-dramático, transitando entre o teatro e a dança, assumindo o lugar da atriz em detrimento da personagem, jogando com a ficção e a realidade e propondo uma relação comunitária entre palco e plateia.
Contemplada no projeto O corpo negro indígena, do Sesc RJ, a peça tem direção de rodrigo de odé, direção de produção de Rafael Lydio, direção de movimento de Joana Marinho e é performada pela atriz e coreógrafa Valéria Monã. A performance é baseada em referências culturais africanas, buscando compor um acontecimento em que a fala, o rosto e a postura da herdeira de um povo possam comunicar a perigosa alegria revolucionária de quem milita na perene disputa pelo direito à terra, ao corpo e ao discurso.
Herdei meu corpo valoriza o corpo e a história da mulher negra como essa figura de resistência, de reinvenção, de recriação da vida coletiva negra, da vida filosófica, da vida cultural, da vida política negra, diante do desastre do racismo patriarcal.
“O próprio corpo da Valéria traz essa referência viva, mas no texto e na nossa inspiração coreográfica, a gente sublinha a importância de reconhecer na figura da mulher negra essa importância histórica, cultural e política como força de antagonismo, a partir da sua perspectiva plena, que se desvia do histórico da dor para mostrar como se constitui uma subjetividade sóbria, uma ética autoconsciente, extremamente poderosa, porque reconhece no símbolo do racismo patriarcal o seu grande antagonista, seu grande inimigo, e como esse símbolo se mantém”, explica rodrigo de odé, diretor artístico do espetáculo.
Ele acrescenta ainda que o racismo patriarcal se manifesta na vida cotidiana e na história da formação cultural da sociedade brasileira e, segundo ele, a figura desta mulher negra em cena deve ser vista como símbolo de altivez, serenidade, coragem e resiliência diante do sofrimento. “A gente não exclui o histórico da violência, mas a gente se coloca em atitude de confronto, em atitude altiva de confronto, de reinvenção diante do desastre, da calamidade”, completa.
O Brasil foi colonizado sobre a exploração da terra e da mão de obra escravizada de africanos trazidos ao país. Por outro lado, quando os europeus vieram, cotas de terras foram disponibilizadas para que eles ocupassem o território brasileiro, como o caso da imigração italiana no final do século XIX.
Valéria Monã relembra o fato e reforça que a terra nunca foi direito do povo negro e indígena no Brasil, assim como a propriedade. Segundo ela, o espetáculo enfatiza que o corpo é o primeiro território que se habita e é visto pelo outro, dominando as atitudes, os quereres, as ações.
“Sonhos e qualidade de vida são atravessados e atropelados e surgiu essa vontade de falar sobre isso já que o projeto fala sobre os povos negros e indígenas e sobre a terra. Eu sou de um orixá que é da terra, sou filha de Omolu, com uma família toda da energia da terra. Foi um presente e está sendo um desafio porque herdar meu corpo é uma coisa bem difícil devido ao ori que eu tenho, de bater de frente com muitas situações que acontecem”, afirma a coreógrafa.
A diretora de movimento do espetáculo, Joana Marinho, reforça a identidade da montagem e a contribuição dos escravizados na construção da cultura brasileira como um todo, ressaltando a coletividade quando se fala em negritude e ancestralidade.
“O corpo negro guarda em si memórias que foram historicamente silenciadas. Histórias que não são pessoais, são as memórias de um povo. Então, o processo de dirigir o movimento num espetáculo que fala do corpo como herança, de um corpo militante, cheio de cicatrizes ancestrais, requer escuta. A direção que tomamos, Valéria e eu, foi abrir caminho para que o corpo dela falasse, prover armas para que ele se expressasse livremente. E transformamos essa narrativa em cena”, analisa Marinho.
O trabalho desenvolvido em Herdei meu corpo também tem esse papel, de trazer empatia para público, de fazê-lo pensar em quando herdou seu corpo, o quanto ele faz parte desse projeto, mesmo que isso não tenha sido esclarecido para o público, ele faz parte do conjunto da obra.
“Estou falando desse corpo herdado por meio das suas descobertas, dos seus atravessamentos, surpresas consigo mesmo e, através da outra pessoa, se descobrir, descobrir suas emoções, se criticar. O público vem para herdar o corpo dele”, analisa a coreógrafa e performer Valéria Monã.
A apresentação se desvia do textocentrismo, sendo base do espetáculo o corpo, a dança, a performance, a terra, a negritude. O texto é parte integrante da cena e não protagonista na peça, privilegiando mais a presença viva da atriz em cena do que a mera representação de uma personagem.
“Aqui não é a composição de uma personagem, é a Valéria performando um discurso que se desdobra entre corporeidade e verbalização, entre texto e movimentos. Na mistura entre realidade e ficção, traremos elementos autobiográficos, meus e de Valéria, para a cena, no sentido de mostrar como nossa própria história pode se configurar como elemento estético”, analisa o diretor.
Durante a apresentação, a performer interage diretamente com a plateia, para enfatizar a inexistência de uma quarta parede. Herdei meu corpo ainda conta com uma proposta interativa com o público para além da sala de apresentação do espetáculo, utilizando a tecnologia.
“A gente pensa numa forma de interação com o público que se dê além do espetáculo, criando uma mídia que os espectadores possam acessar depois da apresentação e guardar como referência do trabalho, na forma de um teaser. O jogo com a tecnologia é um das principais alternativas que queremos construir com o público e manter para além da performance presencial”, reflete rodrigo de odé.
“A dramaturgia está falando desse corpo que me pertence e as cenas vêm sendo criadas em cima dessa dramaturgia que posso falar que é da minha vida e vai de encontro a muitas outras vidas. A construção pensa muito no meu corpo, mas como coletivo. Eu nunca me sinto sozinha, mas que tem muitas pessoas comigo no palco e isso me fortalece”, finaliza Monã.
Sobre Valéria Monã (performance)
Com mais de 30 anos de carreira, Valéria Monã é atriz, coreógrafa, professora e animadora cultural. Mestre em Dança Afro, atua como consultora e diretora corporal. Integra a Companhia dos Comuns e o elenco de Contos Negreiros do Brasil. Em parceria com Hilton Cobra, ministra oficinas sobre cultura afro-brasileira. Em 2023, assinou a direção de movimento do musical “Viva o Povo Brasileiro – De Naê a Dafé”.
Rodrigo de odé
Pesquisador, dramaturgo, ator, diretor e produtor, rodrigo de odé é o idealizador da Malta Teatro de Nação, um projeto de pesquisa político-pedagógico, em atividade na Cidade de São Paulo desde abril de 2022, que estabelece a importância da capoeira angola e da filosofia africana para a produção de uma poética para o teatro negro contemporâneo.
No teatro desde 1985, produziu, em 2024, o “Ciclo de Oficinas Elegbára Beat”, no Centro de Cultura e Arte Batakerê, e a publicação do texto teatral de sua autoria “Elegbára Beat: um comentário épico sobre o poder”, pela Kitabu Editora; e dirigiu seu grupo, a Malta Teatro de Nação, na leitura dramatizada de “Elegbára Beat” no Centro de Cultura e Arte Batakerê e na SP Escola de Teatro, em agosto de 2024, na Cidade de São Paulo.
Em novembro de 2024, concebeu, produziu e dirigiu a residência artística “Afrocerimônias: a filosofia da cena no teatro de nação” e a performance “Afrocerimônias: um xirê oralitário”, no Tusp (Teatro da USP), em São Paulo.
Joana Marinho
Joana Marinho é atriz, diretora, dramaturga, cineasta e diretora de movimento, com 20 anos de trajetória nas artes cênicas e na valorização das culturas de matriz africana — reconhecimento que lhe rendeu o título de Doutora Honoris Causa. É formada em Ciências Sociais com ênfase em Antropologia pela UFRJ.
Fundadora da Eró Criação e Produção, assina trabalhos como o espetáculo Constância, o Encontro das Culturas de Asé e o premiado curta-metragem Ìyálewà — exibido em 37 festivais no Brasil e no exterior, com 36 indicações e 15 prêmios. Sua pesquisa artística articula teatro, cinema e performance, com ênfase na expressividade do corpo e nas estéticas afro-diaspóricas.
Paragogi Cultural
Fundada por Rafael Lydio, produtor cultural com mais de uma década de experiência no mercado, a Paragogi Cultural é uma empresa que enxerga a cultura como uma ferramenta essencial para promover a inclusão e fortalecer a diversidade em todas as suas formas — racial, de gênero, religiosa e cultural.
Nosso propósito é simples, mas poderoso: potencializar a cultura como agente de transformação social e igualdade de oportunidades. Acreditamos que a inclusão é garantir o acesso igualitário a bens, serviços e experiências para todos, enquanto a diversidade é a celebração da multiplicidade de perspectivas, valores e identidades.
A Paragogi Cultural atua no centro das questões sociais, criando ambientes onde pessoas de diferentes etnias, orientações sexuais, culturas e gêneros convivem de maneira respeitosa e enriquecedora. São essas interações que buscamos fortalecer e expandir por meio de nossos projetos, promovendo espaços de respeito, empatia e diálogo.
Com uma abordagem inovadora e uma visão inclusiva, buscamos não apenas gerar impacto cultural, mas também contribuir ativamente para a construção de um mundo mais plural, acessível e justo. Acreditamos que a verdadeira transformação acontece quando as pessoas se sentem representadas, ouvidas e respeitadas em suas particularidades. É esse compromisso que nos impulsiona todos os dias.
Ficha técnica
- Performance: Valéria Monã
- Direção artística: rodrigo de odé
- Dramaturgia: rodrigo de odé e Valéria Monã
- Direção de Movimento: Joana Marinho
- Direção de Produção: Rafael Lydio
- Trilha Sonora Original: André Sampaio
- Figurino: Arieli Marcondes
- Desenho de Luz: Pedro Carneiro
- Instalação: Pedro Carneiro
- Coordenação de comunicação: Incerta
- Assessoria de imprensa: Alessandra Costa
- Projeto gráfico, fotografia e mídia sociais: Daniel Barboza | Incerta
- Coordenação administrativa e financeira: Carolina Villas Boas | Clareira Cultural
- Produção: Paragogi Cultural
Serviços:
Circulação Herdei meu corpo
5 a 8 de junho – Sesc Copacabana – Rua Domingos Ferreira, 160 – Copacabana – Rio de Janeiro
