Uma orquestra para Ivan Lins

Muito se fala do prestígio e da presença de Ivan Lins na música mundial. Aliás, desde o início de sua carreira. Quando ainda não havia gravado sequer uma faixa, em 1968 o famoso pianista Bené Nunes ao ouvi-lo tocar em casa algumas de suas imberbes composições foi – senão premonitório – certeiro: “Não vejo um compositor assim desde que conheci o Tom, há uns dez anos”. E Ivan seguiria de fato o caminho de Tom Jobim, seja na criação de um cancioneiro vasto, denso e querido, mas também no tal prestígio internacional, no público de música de qualidade e, sobretudo, entre intérpretes e músicos de jazz.

Também lá no início, a maior cantora do mundo Ella Fitzgerald se encantou tanto com a música de Ivan que se arriscou a cantar “Madalena” em português, para não dispensar aquela canção cheia de balanço e modulações incríveis. O midas Quincy Jones, para ficar num outro exemplo, ao conhecer a obra de Ivan resolveu-a espalhar pelos discos que dali em diante produziria. E assim o fez, colocando o compositor brasileiro definitivamente no ambiente do jazz e da grande música popular internacional.

Este álbum “Abre Alas”, com o título assim em português, lançado pela gravadora independente Mills Records, mesmo em se tratando de uma produção totalmente multinacional, é uma nova e inestimável prova disso. Senão, leiam: “A música de Ivan tem sido parte da minha vida. Seu lirismo, sua noção única de melodia e harmonia têm me inspirado há muitos anos”, escreveu o saxofonista suíço George Robert, para explicar o desejo de gravar, com sua prestigiada George Robert Jazz Orchestra este álbum com título em português e dedicado à música de Ivan, com a participação do compositor no piano e vocais (em português!).

Senão, ainda, leiam mais isso: “Sou fã da música de Ivan há muito tempo. Suas incríveis composições são tão emocionantes e cheias de cores, que foi uma experiência muito legal orquestrá-las para uma grande formação. Os arranjos praticamente se escreveram sozinhos”, arrematou Bob Mintzer, arranjador e saxofonista americano ligado ao mítico grupo de jazz fusion Yellowjackets – entre outras orquestras e formações.

Por uma daquelas coincidências que só acontecem com quem de fato frequenta o circuito musical internacional, quando em 2008 foi convidado por George Robert para escrever os arranjos deste álbum sobre a obra de Ivan Lins, Bob Mintzer descobriu-se no mesmo hotel em Tóquio do compositor brasileiro, que se apresentava no Blue Note local. Aproveitou para assistir a todos os shows, e pegar o jeito de Ivan tocar com os músicos de sua banda. E trocar ideias com o próprio Ivan, de quem já era admirador.

Ivan Lins e George Robert

O resultado está todo aqui. “Abre Alas” é um disco da big band George Robert Jazz Orchestra, gravado em maio de 2009 na Suíça, com arranjos do americano Bob Mintzer para sete temas de Ivan Lins, que além de cantar e tocar suas harmonias no piano elétrico Fender Rhodes, levou ainda o guitarrista de sua banda na época, o uruguaio (hoje radicado nos Estados Unidos) Leonardo Amuedo. À música de Ivan, já rica e cheia de nuances por natureza das composições, Bob Mintzer acrescentou coloridíssimos desenhos de sopros, executados com afinco e vibração pelos músicos da orquestra, ouçam a faixa-título,

que abre o álbum, sente-se a alegria dos músicos a cada modulação, o prazer de achar nuances novas, seja na própria composição, no arranjo novo, no jeito de a orquestra tocar, além dos vastos espaços para os solos de vários dos músicos.

O repertório, acertado entre os três a partir de mais de 20 composições, foi “testado” antes da gravação em estúdio, em dois concertos na Suíça. “Os arranjos do Bob soaram tão bonitos e poderosos que ficou fácil cantar e tocar meu Rhodes. Grande vibração e excelente atmosfera o tempo todo”, atestou Ivan, ressaltando o caráter desde início internacional do projeto, do encontro com George Robert primeiro em Nova York no final de 2008, e o posterior encontro com Bob Mintzer em Tóquio – ambos viram e “estudaram” sua música direto na fonte, no palco com seus músicos – antes da gravação na Europa

Além de “Abre Alas”, do início dos anos 1970, da fase “Modo Livre”, com linguagem bem compatível a uma big band, e do inevitável samba “Madalena”, ainda dos anos 60, cujo arranjo abre espaço para o solo passear por vários músicos e instrumentos – o repertório é uma viagem pela obra de Ivan, sobretudo suas mais complexas e líricas composições. A romântica “Saudades de casa”, a densa balada “Começar de novo” e a levíssima canção “Passarela no ar” são exemplares da variedade de estilos de Ivan e registram sua relação com grandes letristas de sua geração, como Vitor Martins e Abel Silva. Dá gosto de ouvir os contracantos, as pontes, os desenhos de sopro descobertos por Bob Mintzer em cada canção, que soam como novas a cada audição – daí a importância dos trabalhos das orquestras de jazz para a obra de compositores complexos como Ivan. Seja na “rítmica” “Boa nova” (da parceria de Ivan com Celso Viáfora) ou na “melodiosa” “Velas içadas”, a big band de George Robert acha sempre novas nuances.

Além de dois inspirados temas instrumentais de Robert na linha latina e romântica também abraçada por Ivan – “Mi corazón” e “Cancion de amor” – diante da música de Ivan Lins só restava à orquestra acrescentar ao repertório um standard dos standards, um “Over the rainbow” como nunca se viu antes, o tema de Harold Arlen reinventado pelo arranjo de Bob Mintzer, como se fosse um tema do Ivan, contemporâneo, complexo e divertido.

É que hoje consagrado – como prometia no início da carreira – no mundo da música, Ivan passa mais ou menos metade do ano no Brasil e a outra metade pelo mundo, seja com sua banda ou mesmo se apresentado com orquestras de jazz ou clássicas. Este “Abre Alas”, lançado agora 15 anos depois de gravado, flagra o momento em que Ivan começava esse processo de usar de fato a orquestra como instrumento, o melhor instrumento para a melhor música, como se vê aqui.

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