Maria Bonomi, a arte de amar, a arte de resistir é o titulo da mostra em comemoração aos 90 anos da artista. A exposição apresenta mais de 250 trabalhos – parte de uma produção plástica extensa, desenvolvida através de alegorias e metáforas que revelam um universo rico em acontecimentos políticos, vivências pessoais e manifestações artísticas
Com curadoria de Paulo Herkenhoff e Maria Helena Peres, a exposição ocupa todo o primeiro andar do espaço – e oferece ao público um retrospecto que compreende quase 80 anos de produção artística de Maria Bonomi e de suas relações com o universo cultural brasileiro e internacional.
Dos desenhos à arte pública, das xilogravuras às esculturas, dos cenários aos figurinos, a poética de Maria Bonomi se manifesta como um sistema vivo e pulsante, que se expande em cada detalhe de uma obra que se revela nos mais variados espectros de sua criação e de seus valores existenciais.
OLHAR O MUNDO, OLHAR DE DENTRO
Desde o simples gesto adolescente de moldar uma pomba para a capela do Palacete Martinelli, de seu avô materno, que estava em construção no Rio de Janeiro quando a família veio para o Brasil, em 1945, Maria Bonomi dedicou-se a travessias diversas; a bordo da xilogravura, sua experiência mais profunda, a artista expandiu sua criação pelos mais variados formatos e sob as mais diversas perspectivas.
Nos amplos e históricos ambientes do Paço Imperial, um conjunto de mais de 250 obras compõe a maior retrospectiva dessa artista sempre inquisitiva, questionadora e antenada com as realidades do mundo, da alma e de uma poética inesgotável. Sem uma ordem propriamente cronológica, as onze salas da exposição percorrem a trajetória de Maria Bonomi e apresentam sua obra sob vários ângulos, tendências e focos distintos.
A partir de sua vivência entre mestres como Lívio Abramo – que lhe apresentou a goiva, a prensa, a matriz e as tintas, além da impressão manual com a colher de bambu – e o contato com a arte do mundo em grande perspectiva, Maria Bonomi desdobrou seu universo criativo sob a percepção de um mundo que precisava ser questionado e representado por uma arte viva, ebuliente e cortante.
Sua inquietude aflorada diante das transformações, das ideias e das questões essenciais ao espírito humano, sempre foi um componente essencial em seu processo criativo. A partir, sobretudo, de vivências em São Paulo, Nova York, Rio de Janeiro, Veneza, Ljubljana, Beijing e Guanlan – sem contar outros mergulhos mundo afora –, sua arte avança em novas dimensões e questionamentos, além de reafirmar posições políticas e sociais.
Amor, homoafetividade, o olhar sobre o outro, sobre o mundo e sobre a brasilidade, os territórios, os povos originários, as injustiças, a Covid-19 e tantos temas candentes, que jamais deixarão de gritar perante a humanidade, marcam presença na retrospectiva que expõe as principais raízes de uma arte concreta e certeira.
–É uma exposição sincera por apresentar temas polêmicos; transformadora pelas propostas técnicas reinventadas e perturbadoras; e por acontecer sem filtros mercadológicos – avalia a curadora Maria Helena Peres. –Mas reitero a coragem de Maria, que tem sua arte reverenciada nacional e internacionalmente, mesmo que nadando contra a corrente – completa.
MERGULHO NA INTENSIDADE: DO INÍCIO AO PRESENTE
As salas iniciais mostram ao público os primeiros contatos de Maria Bonomi com a arte, assim como seus mestres, mentores e algumas viagens importantes – além de vários conjuntos de obras, entre os quais Favela, Babel e Pedra Robat (1974), apresentada na última Bienal de Veneza (2024), cujo tema foi Stranieri Ovunque –Estrangeiros em todo lugar.
Suas relações com a poesia, a literatura e o teatro também são representadas aqui, além das obras Quadrantes e Amor Inscrito. A história pessoal da artista se impõe e revela, no erotismo do ideário dessas obras, o encontro amoroso entre Maria Bonomi e Lena Peres (2004), juntamente com os trabalhos Love Layers e Lena, obra capital no percurso da artista.
A cor na produção de Maria Bonomi é destacada em obras como Apoteose (1993) – série inspirada na Marquês de Sapucaí, que revela detalhes de um desfile de escolas de samba no Rio –, e Tropicália (1995), obra fractal, na qual a artista mais uma vez se supera: cria 319 matrizes de diversas dimensões e formas para o trabalho, que é um manifesto em prol da ecologia.
POLÍTICA, LUTA E CONVICÇÕES
Maria Bonomi não se calou diante do contexto da ditadura militar de 1964 e seus horrores. Durante a Bienal de São Paulo em 1965, entregou uma carta coletiva, em mãos, ao ditador Humberto de Alencar Castelo Branco, instando-o pela libertação dos intelectuais presos arbitrariamente pela polícia política federal. Na mostra que ocupou o grande salão do MAM do Rio de Janeiro, em 1971, a artista atualizou o manifesto Libertas quae sera tamem; e em resposta ao AI-5, exibiu Balada do terror (1970, 250 x 100 cm), uma dramática simbolização da cor e da forma como um grito de horror, um réquiem para os mortos e para os vivos que sofriam torturas. Sua altura e seu tônus remetem à parte central de uma forca como a de Tiradentes e a um altar sacrificial.
Outro importante trabalho de arte como resistência é a instalação Tetraz – dança de facas –, conjunto que abriga uma série de obras voltadas para a questão da liberdade, em todos os aspectos. A obra é de 2003, época em que a artista advertia ao país que a resistência ao governo progressista do presidente Lula, recém-empossado, seria uma luta de vida ou morte.
OBRAS EM ESPAÇOS PÚBLICOS
Para Maria Bonomi, a arte pública tem um significado que vai muito além de uma obra de arte deslocada para um espaço fora dos museus; é uma intervenção que busca se incorporar ao cotidiano e provocar mudanças na percepção e na memória das pessoas. A artista vê a arte pública como uma “tatuagem perene da cidade”, onde a obra se funde com o ambiente. Em seus projetos, Maria Bonomi busca uma interação e autoria coletiva, que envolve não apenas artistas, mas também arquitetos, engenheiros, pedreiros e a própria comunidade na execução.
No painel Epopeia paulista (2004, 3 x 73 m), que se encontra na Estação da Luz do metrô de São Paulo, a artista evidencia o orgulho dos paulistanos pelo dinamismo da cidade, com uma epopeia que presta homenagem aos imigrantes, aos paus-de-arara e aos anônimos que construíram a cidade. Fazem parte da obra elementos extraídos da literatura de cordel nordestina e “memórias perdidas” dos usuários do trem – objetos esquecidos nos vagões, como um acordeom, um vestido de noiva, óculos, ferramentas de trabalho e outros instrumentos musicais.
O Painel Etnias – Do Primeiro e Sempre Brasil, realizado a convite de Oscar Niemeyer para o Memorial da América Latina, é uma das mais notáveis obras de arte pública da artista. A obra é um conjunto de painéis em argila – que evoca as origens, as pinturas rupestres, a cultura indígena; em bronze – com cavernas e armas de fogo, que remetem à chegada dos colonizadores; e em alumínio – que simboliza os tempos atuais. É uma obra que retrata a história do encontro das diferentes culturas do país e o aculturamento sofridos pelos povos originários. O público se integra à obra passeando entre placas e espelhos.
A exposição se completa com um filme sobre a experiência da arte por Maria Bonomi, realizado no primeiro semestre deste ano pela diretora de cinema e de televisão Denise Sarraceni. A ementa do filme está afixada na entrada da sala de projeção.
Para Maria Bonomi, a mostra do Paço Imperial é mais do que intenção e gesto: reúne a memória artística de toda uma história de energia, vontade e verdade íntima.
–Acredito piamente na força da Arte. Como conhecimento libertador. Mas sem improvisos, suada, estudada e mão na massa– ressalta Maria Bonomi. – Não tem mágica. É preciso fazer o básico de forma extraordinária.
– A gravura é soberana e todo-poderosa porque ela sabe que pode ser transformada e continuar ela mesma como a Hydra (Medusa) – lembra Bonomi. – Tratamos, durante uma vida, o gesto que faz a matriz. E esta se modifica, se move e se pereniza em várias situações infinitas – arte pública, instalações, pensamento gráfico perene e anterior à imagem até de uma estampa– define.
MARIA BONOMI
Gravadora com uma produção de caráter monumental, realiza xilografias, águas-fortes, litografias, arte pública e instalações ao longo de quase oito décadas. Trabalhou com Lívio Abramo e foi bolsista em Nova Iorque no Contemporaries Pratt Institute. Estudou com Johnny Friedlaender no MAM do Rio de Janeiro e com Emilio Vedova, em Berlim e Veneza.
Entre as exposições individuais, destacam-se: MAM São Paulo, 1956; Roland de Aenlle Gallery, Nova Iorque, EUA, 1958; Galerie Buchholz, Munique, Alemanha; e Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1971.
Participou de nove edições da Bienal de São Paulo (prêmio de gravura na 8ª edição), sete em Ljubljana e duas em Praga e Veneza. Conquistou o Grande Prêmio de Gravura na Bienal de Paris 1967.
A partir de 1974 inicia obras de arte pública em São Paulo, em Manaus e no Chile. Em 1999 obteve seu PhD em Poéticas Visuais, com o tema “Arte Pública Sistema Expressivo Anterioridade”, pela ECA/USP.
Em 2007 publicou o livro Maria Bonomi: da gravura à arte pública, pela editora USP– Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.
Em 2001, foi condecorada com a “Ordem do Rio Branco”; em 2008, com a “Ordem do Mérito Cultural” (MInC). Em 2014 foi agraciada com o título de Cidadã Paulistana.
SERVIÇO
Maria Bonomi, a arte de amar, a arte de resistir
Abertura: 6 de setembro | Visitação: até 16 de novembro
Centro Cultural do Patrimônio Paço Imperial
Praça Quinze de Novembro, 48, Centro, Rio de Janeiro/RJ
Tel.: (21) 2215-2093 / (21) 2215-2622
E-mail: [email protected]
Dias/Horários: terça a domingo e feriados, das 12h às 18h
Entrada gratuita
