Boots: sucesso LGBTQIAP+ da Netflix que o Pentágono chamou de “lixo progressista”

A história real de Greg Cope White ganha vida na Netflix e se torna um dos maiores sucessos do streaming

por Ana Magal
Boots faz sucesso entre o público e irrita os militares norte-americanos

Tem coisa melhor do que terminar o dia e dar de cara com uma série que te fisga logo nos primeiros minutos? Pois é exatamente isso que acontece com Boots, a nova produção da Netflix que tem feito barulho (e olha, não é só pelo tema delicado que aborda). Estou quase finalizando a temporada (falta apenas um episódio, confesso que estou enrolando porque não quero que acabe) e posso dizer com todas as letras: essa série é daquelas que a gente sente falta quando termina.

Baseada no livro autobiográfico The Pink Marine, de Greg Cope White, Boots conta a história real de um jovem gay que, em 1979, decidiu se alistar nos fuzileiros navais dos Estados Unidos. Sim, você leu certo: em plena era Reagan, quando a homossexualidade era considerada tabu absoluto dentro das Forças Armadas, Greg (ou melhor, Cameron Cope, como foi rebatizado na adaptação) encarou um dos ambientes mais hostis e conservadores que existiam na época.

A trilha sonora que faz o coração voltar no tempo

Preciso começar falando do que mais me pegou nessa série: a trilha sonora. Gente, quando “Blue Monday” do New Order começou a tocar, meu coração literalmente explodiu. E “Fernando” do ABBA? Aquele momento pós-câmara de gás, tão delicado e inesperado, me fez viajar no tempo. A produção soube usar cada música como uma personagem à parte, traduzindo sentimentos que as palavras dos protagonistas muitas vezes não conseguem expressar.

Não é à toa que a série dedica episódios inteiros a construir essa atmosfera dos anos 1980. De “I Want To Break Free” do Queen embalando a viagem de ônibus até o campo de treinamento, passando por “Venus” do Bananarama durante a raspagem de cabeça dos recrutas. E o que falar de “Under Pressure” na celebração final. Cada faixa carrega um pedaço da alma de Cameron e seus companheiros de pelotão, e faz quem cresceu nos anos 1970 e 1980 voltar ao tempo (como eu).

Uma receita que funciona: delicadeza com seriedade

Boots consegue fazer algo que poucas séries alcançam: equilibrar humor e brutalidade sem perder a credibilidade. A série tem uma delicadeza incrível ao contar a história de Cameron de um jeito divertido, mas que não subestima o peso daquilo que ele viveu. Já vimos essa “receita” em outras produções com o mesmo estilo, mas Boots se destaca não apenas por ser baseada em fatos reais e ter uma trilha sonora impecável, mas também pelo elenco de atores incríveis e ainda pouco conhecidos do grande público.

Miles Heizer (de 13 Reasons Why) entrega uma performance tocante como Cameron, enquanto Vera Farmiga brilha como Barbara, a mãe caótica e carismática do protagonista. A química entre Heizer e Liam Oh, que interpreta Ray (inspirado no amigo real de Greg, Dale), é palpável e genuína, e não é por acaso: o elenco passou por um verdadeiro “mini boot camp” antes das filmagens, com marchas, corridas e treinamento de tiro no calor sufocante de Louisiana, onde as temperaturas chegaram a 40°C.

A história real por trás da ficção

O que pouca gente sabe é que a entrada de Greg Cope White nos fuzileiros navais foi quase cômica de tão absurda. Com apenas 18 anos em 1979, ele estava 13 quilos abaixo do peso mínimo exigido e quase foi recusado. A solução? Seu recrutador achatou um pedaço de chumbo com um martelo e prendeu no corpo de Greg com fita adesiva para aumentar seu peso artificialmente. Sete horas depois, ele estava de cabeça raspada, uniformizado e prestes a começar um dos períodos mais intensos de sua vida.

Durante os seis anos em que serviu, Greg viveu em segredo absoluto. Aos domingos, quando os colegas falavam sobre namoradas, ele praticava o que chamava de “matemática de pronomes” (trocava nomes e gêneros nas histórias para não levantar suspeitas). Como ele mesmo disse em entrevistas: “Eu não podia mentir para sempre, mas ironicamente foi nos fuzileiros que ganhei coragem para ser eu mesmo“.







A partir daqui pode conter spoilers, continue por sua conta e risco!




Liberdade criativa que amplifica a emoção

Para tornar a narrativa mais envolvente, a Netflix adicionou elementos fictícios à trama original. Um dos mais impactantes é o personagem Eduardo Ochoa, interpretado por Johnathan Nieves. No livro, o companheiro de beliche de Greg se chamava Pritchett (era casado), havia se alistado para garantir benefícios de veterano e tentava sustentar a família. Na série, os roteiristas transformaram esse drama emocional em uma tragédia: Ochoa descobre que sua esposa o traiu e isso o leva ao colapso emocional e à morte.

Essa liberdade criativa, longe de desrespeitar a história original, amplifica a emoção e torna a experiência mais cinematográfica. Mesmo com as mudanças, a essência permanece intacta: o peso da vida militar e as dores pessoais escondidas atrás do uniforme continuam sendo o coração da narrativa.

O contexto histórico que torna tudo mais tenso

A série se passa em 1990, três anos antes da polêmica política “Don’t Ask, Don’t Tell”, que permitia que pessoas LGBTQIAP+ servirem nas Forças Armadas apenas se mantivessem em silêncio absoluto sobre sua orientação. Essa ambientação torna cada cena ainda mais tensa: bastava um erro, um deslize, para que Cameron fosse expulso, humilhado e preso. O medo constante do protagonista reflete o clima de paranoia e repressão da época. Um lembrete doloroso de como direitos básicos foram (e ainda são) negados a tantas pessoas.

O legado de Norman Lear e a mensagem de autenticidade

Vale destacar que Boots foi o último projeto de Norman Lear, lenda da TV americana e criador de clássicos como Tomates Verdes Fritos. Ele faleceu em 2023, antes de ver o lançamento da série. Para Greg Cope White, que havia trabalhado com Lear nos anos 1990, ver o nome do mentor nos créditos foi uma honra: “Norman acreditava que a TV podia mudar o mundo e essa série prova isso“.

A mensagem final de Boots é clara e urgente: a autenticidade custa caro, mas vale cada sacrifício. “Se for seguro para você, viva sua vida autêntica. Somos mais fortes quando somos autênticos“, afirmou Greg em várias entrevistas. Mais de 40 anos depois de sua entrada no Exército, ele ainda se surpreende com o impacto de sua história, que saiu de um banheiro em Nova Orleans direto para um painel luminoso na Times Square.

A polêmica com o Pentágono

Como era de se esperar, a série não passou despercebida pelas autoridades militares. O Pentágono emitiu uma declaração dizendo não endossar o programa, chamando-o de “lixo progressista” e afirmando que a Netflix “produz e alimenta consistentemente seu público com lixo cultural“. A reação, embora previsível vindo da gestão atual, só reforça a importância e a relevância da história que Boots conta.

Sob o comando de Pete Hegseth, o Departamento de Defesa norte-americano tem tomado medidas para eliminar pessoas LGBTQIAP+ das Forças Armadas, incluindo a renomeação de um navio batizado em homenagem ao líder dos direitos gays Harvey Milk e a ordem executiva que determina a dispensa de todos os militares transgêneros. Nesse contexto, Boots não é apenas entretenimento: é resistência.

O que esperar da segunda temporada

Já ouvi dizer que haverá continuação em uma segunda temporada, e confesso que estou ansiosa. Com oito episódios que equilibram perfeitamente emoção, crítica social e representatividade, Boots prova que coragem e sensibilidade não são opostos, na verdade são parte da mesma experiência humana.

Se você ainda não assistiu, corre lá. E se já viu, compartilhe: histórias como essa precisam ser contadas, vistas e celebradas. Porque, no fim das contas, Boots não é apenas sobre o exército ou sobre os anos 1980. É sobre o custo de esconder quem se é e a força necessária para finalmente viver de forma autêntica. E isso, meus amigos, é universal e atemporal.

Boots está disponível na Netflix Brasil!

 

Minha nota: 10/10

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