Exposições paralelas centram-se na obra e no olhar curatorial de Cristina Canale, que comemora 40 anos de carreira ocupando o instituto cultural no Cosme Velho
Sob curadoria de Pollyana Quintella, mostra retrospectiva traça a trajetória artística da pintora carioca, com publicação lançada na inauguração. Exposição curada por Canale dialoga com grandes nomes da Coleção Roberto Marinho
A Casa Roberto Marinho inaugura, em 15 de agosto de 2024, duas exposições simultâneas em torno da artista plástica carioca Cristina Canale. Essa apresentação em dois atos comemora as quatro décadas de carreira da pintora com a retrospectiva Dar forma ao mundo, e explora o seu olhar curatorial sobre a Coleção Roberto Marinho, em Paisagem e memória.
“Nessa temporada, apresentamos a Cristina Canale curadora no térreo e, no primeiro andar, exibimos a sua obra. Ao percorrer o espaço expositivo veremos o quão fluidas, no seu caso, podem ser essas fronteiras nas paisagens do mundo criado por ela”, destaca o diretor do instituto, Lauro Cavalcanti.
“O conjunto destas duas exposições mostra meu olhar dentro de um acervo brasileiro, que é a minha origem, e, paralelamente, o meu percurso de 40 anos como artista plástica. São dois conjuntos de sensibilidades, com comunicações e pontes entre eles. Foi uma experiência muito rica ver esse diálogo”, avalia Canale.
Radicada há mais de 30 anos na Alemanha, ela mantém forte relação com o Brasil. Sua relevância no circuito de arte nacional se reflete na celebração dessas quatro décadas de produção artística, que tem como marco inicial a exposição Como vai você, Geração 80?, realizada em 1984, no Parque Lage.
CRISTINA CANALE: DAR FORMA AO MUNDO
Em Dar forma ao mundo, a curadoria de Pollyana Quintella se propõe a traduzir as diferentes fases da trajetória da artista, através de cerca de 50 obras. “A Cristina é uma referência quando pensamos na reemergência da pintura no Brasil, sobretudo a partir dos anos 1980. Embora tenha despontado na cena artística como parte da celebrada Geração 80, ela derivou rapidamente para produzir uma obra que deve ser lida sob o seu próprio nome. Afirmar sua singularidade foi um desejo dessa exposição retrospectiva”.
Como aluna da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, na década de 1980, Canale encontrou na pintura o caminho para transbordar a poética que tinha dentro de si. Ao olhar para trás, identifica transformações que a fazem resumir o seu trabalho como “um fluxo de entradas e saídas”. “Sou uma artista de processos. As evoluções do meu trabalho geralmente vêm de dentro, porque eu canso rápido e preciso de engrenagens para mudar. Novas questões vão surgindo e me indicam sempre um outro caminho”, analisa.
Ao longo dessas quatro décadas, Canale usou as telas, tintas e pincéis para resolver questões subjetivas através de sua prática. Como resume Quintella em seu texto de apresentação, a artista vem transitando “da pintura matérica à linha, da linha à forma, da forma ao mundo”.
Orientado por essas fases de trabalho, o recorte curatorial é fisicamente conduzido pela arquitetura da Casa Roberto Marinho, cujo hall do primeiro andar marca o início e o fim da exposição. São sete salas que se interligam de forma circular e segmentam em capítulos os diferentes períodos da pintura de Canale, dando conta da transformação dos processos artísticos.
Apesar de traçar uma linha do tempo, Dar forma ao mundo leva o público a desviar o olhar através de pequenas fendas, onde se inserem trabalhos de períodos diferentes. “Na obra da Cristina, o tempo é mais circular do que linear e, por isso, há alguns furos na cronologia. É uma maneira de questionar a linearidade e de lidar com essa pintura que ultrapassa o engavetamento da produção artística”, explica Quintella. Ao interromper o tempo, a curadora sugere um diálogo entre diferentes períodos da produção, revelando como a artista conversa com seu próprio trabalho ao longo dos anos.
Na primeira sala estão reunidas obras da década de 1980, muito marcadas pela matéria pictórica e pela densidade. Telas de grandes dimensões, como Rio 40 graus (1987) e Cachoeira (1989), evidenciam não só o arcabouço iconográfico de Canale, composto por imagens da vida cotidiana e da experiência de viver no Rio de Janeiro, mas também uma singularidade cromática.
Na sala seguinte, as obras revelam um ponto de virada marcado pela descoberta das linhas e do contorno das formas, através da diluição da matéria: “Eu sentia que aquela textura toda estava sendo compulsiva e que, no fundo, escondia alguma coisa”, reflete a artista. Os motivos orgânicos, que se anunciam, persistem na sua obra mesmo com a mudança para Berlim em 1993. O seu deslocamento se reflete na transição para o papel, em pequenos desenhos e aquarelas sintéticas, também expostas.
As pinturas do final dos anos 1990, que testemunham o seu interesse crescente pela forma biomórfica e a necessidade de abstração, ocupam a terceira sala. Formas ovóides conectam as telas, em que se repara a insistência do motivo orgânico, com formas cada vez mais amplas, e o realce das cores. “Essa forma uterina, que aparece em pinturas como Fruto Proibido (1999), começou a ficar mais óbvia. Só mais tarde, fui me dar conta de que cheguei a isso enquanto estava grávida”, relaciona Canale. Poltrona anos 60 (1999) é outro destaque desta fase.
A primeira década dos anos 2000 é marcada por uma série de novos componentes: os elementos arquitetônicos, com linhas demarcadas e formas mais geométricas, aparecem em representações de piscinas, muros e cercas. As casas, por sua vez, surgem também no formato das bolsas pintadas em telas de menor dimensão. Na quarta sala, estão obras que refletem a primeira metade dos 2000, como é o caso de Esquinas (2016) e Sacolinha (2017).
Nesse período, a artista experimenta estampas e formas padronizadas, e passa a integrar figuras humanas e animais. Se por um lado os traços faciais são irrelevantes, por outro, a mítica feminina ganha ênfase, como se vê em Ella (2018), Passante (2011) e Vizinhas (2011), expostas na quinta sala. “As figuras não são abstratas o suficiente para serem ícones, nem particulares o bastante para denotar um indivíduo”, resume Quintella.
A partir de meados dos anos 2010, uma profusão de faces passa a permear a obra de Canale. Apesar da referência direta ao modo pelo qual o gênero do retrato se convencionou na história da arte, mantém-se a indiferença pela figura retratada. Exibidas na sexta sala, composições como Paixão (2023) e Bossa nova (2024) ostentam geometrismos, padronagens e fragmentos de tecidos colados sobre a superfície, mas dispensam a identidade das personagens. Por outro lado, Musa (a partir de Di Cavalcanti) (2021-22) é mais facilmente reconhecível por ter sido inspirada na Ivette Rocha Bahia pintada pelo modernista, em 1963.
Dar forma ao mundo tem a sua última sala dedicada a trabalhos mais recentes da pintora. Enquanto Ondas (2024) destaca a reintegração da natureza e a aproximação com uma dimensão onírica e fabulativa, o tríptico Reflexos (2023) e as aquarelas Correnteza, Cactus e Lágrimas (2024) recuperam referências estéticas e técnicas do início de sua carreira.
Acompanha a individual uma publicação que pretende conectar o público à trajetória da pintora. A curadora destaca a importância do livro, que traz não só os textos da exposição, mas escritos mais antigos sobre o trabalho de Canale: “São textos explicativos que tornam mais acessíveis as principais questões do trabalho da Cristina. Esperamos que seja uma referência para o público se aproximar de sua obra”.
PAISAGEM E MEMÓRIA, UM OLHAR SOBRE A COLEÇÃO ROBERTO MARINHO
Já a exposição Paisagem e memória, no térreo, apresenta a faceta curadora de Cristina Canale. “Convidar artistas para curar exposições é, por um lado, um modo de multiplicar os olhares sobre a Coleção Roberto Marinho e, por outro, de estabelecer uma ponte entre diferentes períodos da arte. Ao trazer artistas de períodos anteriores para o presente, cria-se uma perspectiva de diálogo com a contemporaneidade que enriquece a fruição do acervo da Casa”, afirma Lauro Cavalcanti.
Para Canale, o interessante de fazer as duas mostras em paralelo foi estar em contato com tantas referências iconográficas de uma só vez: “Uma das coisas que mais me interessam e me inspiram é o trabalho dos outros. E não importa se foi feito há quatro ou quatro mil anos, porque assimilo tudo da mesma forma”.
Assim, ela traça um caminho subjetivo aproveitando-se da liberdade do seu olhar artístico, sem a pretensão de se distanciar das imagens que formam o seu repertório imagético e das ligações com seu próprio processo criativo. Ocupando quatro salas, a seleção de cerca de 40 obras compõe o que Canale chama de “inconsciente estético”, transformando o espaço em uma colagem de memórias e afetos.
Elementos estéticos e temáticos criam um fio condutor que dá o tom da conversa entre os diferentes artistas. Na primeira sala, o volume é o ponto em comum entre as montanhas retratadas em Espantalho (1940), de Portinari, Chef de Bororenos partant pour une attaque (1835), de Debret, e Noite de São João (1961), de Guignard; e os volumosos seios de Ivette (2020/21), múltiplo produzido por Canale a partir da pintura Ivette Rocha Bahia (1963), de Di Cavalcanti. A gravura resultou do convite para uma primeira experiência como artista-curadora, integrando a exposição coletiva A escolha do artista, que reuniu diferentes olhares sobre a Coleção Roberto Marinho, em 2022.
“Interessou-lhe não somente retraçar o caminho dos pincéis do autor moderno mas, sobretudo, fornecer alternativas pictóricas e caminhos que, a cada suposta etapa, poderiam ter sido tomados pelo pintor. Esse exercício, feito por meio de múltiplos desenhos, resultou, para além da serigrafia e pintura finais, uma engenhosa e reveladora conversa entre uma mulher pintora que tira o feminino da mera condição de modelo para assumir papel de parceria na obra”, revela Lauro Cavalcanti. Os desenhos produzidos no processo de estudo para Ivette estão expostos em Paisagem e Memória.
A segunda sala realça texturas através da série de desenhos (Sem título, 1940) em que Guignard representa a vegetação do Jardim Botânico; da grandiosa tela O riacho (1986), de Jorge Guinle; e da autoral Está tudo cinza sem você (1986). Também são exibidos alguns desenhos de observação de Cristina, feitos em papel na década de 1980, a partir de paisagens cariocas.
A terceira sala é regida pelos contrastes. Sob o olhar de Canale, as Ripas (1991), de Ione Saldanha, evocam os pixels que formam a imagem de Flora e Fauna Brasileira (c. 1934), de Portinari. A geometria das pinturas de Alfredo Volpi (Sem título, déc. 1970) e Maria Helena Vieira da Silva (Composition [Composição], 1955), por sua vez, revelam “um mundo já estruturado, mas tropical”.
Na última sala, Canale propõe um diálogo com os jardins da Casa. Para isso, abre as janelas para as plantas e flores pintadas por Burle Marx (Sem título, 1941) e Guignard (Sem título, 1936-1937). Completam a seleção uma serigrafia ornamental de Luiz Aquila (Em casa, 2017) e uma escultura de Frans Krajcberg (Sem título, 1971).
No dia das aberturas, às 17h30, serão realizadas visitas guiadas com a artista e a curadora Pollyana Quintella, para o público visitante de ambas as exposições.
CRISTINA CANALE
Carioca, nascida em 1961, Cristina Canale ingressa na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no início dos anos de 1980, quando a pintura se firma como a linguagem por excelência da nova geração.
Em 1984, a participação na mostra “Como vai você, Geração 80?” marca o início de sua trajetória profissional. Seus primeiros trabalhos são colagens sobre papel com figuras femininas. Tendo como referências a paisagem carioca, a arquitetura urbana e imagens da história da pintura, produz no fim da década grandes telas com forte carga matérica.
Em 1993, em busca de novos desafios, muda-se para a Alemanha. Estuda em Düsseldorf e se instala em Berlim, onde vive até hoje. Sua obra passa por uma mudança radical. A densidade das telas anteriores cede lugar a espaços fluidos. As formas passam a estruturar a superfície, juntamente com a cor.
Nos anos 2000, conduz seu trabalho como uma investigação permanente e assim problematiza dicotomias inerentes à história da pintura, como a abstração e a figuração, diluindo seus limites.
Ao retomar a figura feminina, em tempos mais recentes, interroga o conceito do retrato, tradicional gênero pictórico, ao mesmo tempo que introduz novos materiais e formas de trabalhar as superfícies, num incessante movimento de experimentação e reflexão, simultaneamente visual e profundamente intelectual.
CASA ROBERTO MARINHO
A Casa Roberto Marinho foi aberta ao público como instituto cultural sem fins lucrativos em 28 de abril de 2018, no Cosme Velho, Zona Sul do Rio de Janeiro. A instituição foi integralmente criada com recursos próprios da família, de forma independente, sem qualquer incentivo ou uso de lei de isenção fiscal. Concebida para promover o conhecimento através da arte e da educação, tornou-se um centro ativo de referência em arte brasileira, sob a direção do arquiteto, antropólogo e curador Lauro Cavalcanti.
O acervo reunido ao longo de seis décadas pelo jornalista Roberto Marinho (1904-2003) é especializado em modernismo brasileiro dos anos 1930 e 1940, e abstração informal da década de 1950. O belo conjunto de cerca de 1.400 peças cadastradas – entre pinturas, esculturas, gravuras, objetos e desenhos – também recebeu trabalhos de estrangeiros, como Marc Chagall (1887-1985) e Salvador Dali (1904-1989).
Com mais de 1.200m² de área expositiva, o projeto conta com sala de cinema, além de cafeteria e livraria especializada em publicações de arte. O jardim, originalmente projetado por Burle Marx com espécies da flora tropical, é um prolongamento da Floresta da Tijuca.
SERVIÇO:
Paisagem e memória, um olhar sobre a coleção Roberto Marinho (térreo) Curadoria: Cristina Canale
Cristina Canale: dar forma ao mundo (1º andar)
Curadoria: Pollyana Quintella
Aberturas: 15 de agosto de 2024, às 19h
Visita guiada: 15 de agosto de 2024, às 17h30
Encerramentos: 17 de novembro de 2024
Instituto Casa Roberto Marinho
Rua Cosme Velho, nº 1105 – Rio de Janeiro | RJ
Tel: (21) 3298-9449
Visitação: terça a domingo, das 12h às 18h
(Aos sábados, domingos e feriados, a Casa Roberto Marinho abre a área verde e a cafeteria a partir das 9h.)
Ingressos à venda exclusivamente na bilheteria:
R$ 10 (inteira) / R$ 5 (meia entrada)
Às quartas-feiras, a entrada é franca para todos os públicos.
Aos domingos, “ingresso família” a R$ 10 para grupos de quatro pessoas.
A Casa Roberto Marinho respeita todas as gratuidades previstas por lei e é acessível a pessoas com deficiência física.
Estacionamento gratuito para visitantes, em frente ao local, com capacidade para 30 carros.