Flávia Souza Lima volta à poesia com ‘Desjeitos’

De todas as manifestações artísticas, a poesia talvez seja a que tenha uma relação com o tempo que envolva duas diferentes instâncias. Uma delas é o tempo que um poema leva para ser escrito e burilado. Outra é o tempo que um conjunto de textos leva até virar um livro. Em ambos os casos, o tempo é um aliado. E a poeta Flávia Souza Lima sabe bem disso. Ela está de volta com “Desjeitos – Alguma poesia” (Numa Editora), que marca seu retorno à literatura 32 anos após estrear com “Sobre-viver”, lançado em 1989.  E esse regresso dá-se em grande estilo – e isso não é mero lugar comum. O texto da orelha é assinado pela cantora, compositora e escritora Joyce Moreno. Dois jornalistas saúdam essa (re)estreia: enquanto Patricia Palumbo dá à autora as boas-vindas, Christovam de Chevalier faz o prefácio. A apresentação coube à poeta portuguesa calí boreaz, contemporânea da autora.

Flávia Souza Lima está de volta à literatura sem nunca ter se afastado da poesia. Nesse meio-tempo, ela chegou a elaborar dois livros que acabaram descartados em razão do alto teor de exigência que ela, leitora atenta antes de tudo,  tem com o gênero  e com o próprio fazer poético. Esse rigor é destacado pelos quatro nomes que saúdam a autora no seu novo livro. “Flávia Souza Lima preenche um pré-requisito fundamental a quem se dispõe a servir à poesia: o da precisão”, constata  Christovam de Chevalier. Tal reflexão ganha vulto na medida em que passamos os olhos pelas quatro diferentes seções às quais os textos foram distribuídos.

A primeira delas tem o título de “Pandêmicas” e reúne parte da produção mais recente da autora. São 14 textos provocados pelas impossibilidades (e transformações) impostas às nossas vidas pela pandemia da Covid-19, como nos versos de “Hipóteses”: “Talvez eu acorde\diante\do azul de Ipanema\ou das Maldivas\ou do teu vestido (…) Em todos os casos\eu estaria perdida”. Outro exemplo é “Eu não ando pelo mundo”, através do qual ela constata: “A tela é\agora\janela (…) A tela é\agora\(única)\ paisagem\(e tábua de salvação)”…

Flávia Souza Lima
Flávia Souza Lima (foto: Cris Lopes)

“Sentimentalidades” é a segunda parte da coletânea, na qual o amor (ou mesmo a falta dele) dá matizes aos textos ali reunidos. Há o amor ligado propriamente ao desejo e também o amor por um amigo ou por um ente. A predisposição para o encontro é explicitada nos versos: “um coração\em persistente\pane elétrica\pisca-pisca\até sem pilha” (“Arritmia”). Do amor à dor de amar, nada é camuflado pela autora que, muitas vezes, atenua a questão com pitadas de ironia, como em “Para dor de cotovelo”: recomenda-se:\\lenço de papel\(limite-se a uma caixa)\ombro amigo\(não abuse)\álcool forte\(a gosto)\\ caso permaneçam os sintomas:\chame um médico\ou\dirija-se ao vão central\da Ponte Rio-Niterói”.

O amor faz-se presente também na terceira seção da obra, “Gaveta”. Não apenas ele. A partir dela,  a poeta revela-nos outros discursos e formas de se expressar, oscilando, por exemplo,  entre a poesia e a prosa poética. Temas relacionados ao seu cotidiano dão as caras em textos como “Mesa para dois”: “cozinho\a poesia que sobrou de ontem\é pouco mas dá para dois\aperto com força os dedos\vendo se escorre mais\mais não há (…) amor\é coração requentado\sobre a sua toalha\manchada do meu vinho”.

Em “Impostora”, última parte da obra, a autora ressalta a poesia em si. Ela vai da própria relação com seu fazer poético (“A respeito de relógio,\dizia meu avô:\aquele que atrasa\não adianta\\A respeito de poema\digo eu\a mesma coisa”) culminando em colocar em xeque sua vocação poética, como em “Naturalidade”: “Divinópolis\Jequié\Juiz de Fora\Itabira\Lisboa\Porto Alegre\Recife\Rio de Janeiro\São Luiz\Salvador\Santo Amaro da Purificação\\terras férteis para a palavra\não constam em minha\certidão de nascimento\\estranho seria se eu lavrasse\aptidão para a poesia”.

Flávia Souza Lima nada tem de impostora. No seu prefácio, calí boreaz aponta para o fato de esses desjeitos mostrarem o quão somos (e estamos) “clandestinos da própria vida, urgentes resignados”. E, assim, urgente e (não necessariamente) resignada, Flávia Souza Lima se desnuda e revela os muitos (des)jeitos da sua escrita. Que ela não invente de levar outros 32 anos para nos brindar com essa poesia que, como bem salienta Joyce Moreno, é ouro.

A autora fala sobre “Desjeitos –Alguma poesia” em entrevista no link: https://youtu.be/eb9DotYfaO0

A autora:

Flávia Souza Lima é jornalista, produtora cultural e realizadora artística. Como jornalista, trabalhou no jornal  O Dia e na TVE (hoje Rede Brasil). Atualmente, apresenta o podcast Chiado, sobre música, literatura e artes com a participação de convidados, e, através da Planetário Produções, criou o Festival Poemúsica, cuja primeira edição, realizada em 2021, contou com Áurea Martins, Guinga, Joyce Moreno e Zé Renato, entre outras participações.

Título: “Desjeitos – Alguma poesia”

Autora: Flávia Souza Lima

Editora: Numa

Lançamento: março de 2022

Formato:  11 X 16cm

Número de páginas: 163

Preço: R$ 44,00

Vendas: www.numaeditora.com