O mundo da música brasileira está em luto. Lô Borges, compositor e cantor fundamental do movimento Clube da Esquina, faleceu no domingo, 2 de novembro de 2025, deixando um legado incomparável para a música popular brasileira.
A partida de um gênio musical
O artista mineiro deixou-nos às 20h50, no Hospital Unimed da capital mineira, onde estava hospitalizado desde 17 de outubro. A internação ocorreu após um quadro de intoxicação medicamentosa, evoluindo para falência de múltiplos órgãos, conforme informado pela equipe médica.
Durante a internação de quase três semanas, o músico passou por intervenções complexas, incluindo traqueostomia em 25 de outubro e sessões de hemodiálise, mas não conseguiu superar as complicações clínicas.
Da infância em Belo Horizonte à história da música
Salomão Borges Filho chegou ao mundo em 10 de janeiro de 1952, em Belo Horizonte, sendo o sexto entre onze irmãos. Filho do jornalista Salomão Magalhães Borges e da professora Maria Fragoso Borges (Dona Maricota), cresceu respirando música no bairro Santa Tereza.
A virada em sua vida aconteceu quando a família se mudou para o Edifício Levy, no centro da capital. Ali, aos 10 anos, conheceu quem seria seu parceiro musical mais importante: Milton Nascimento. O encontro foi praticamente cinematográfico – ao descer para comprar pão, ficou hipnotizado pelo som de violão vindo do apartamento de Milton, esquecendo completamente sua tarefa.
A influência dos Beatles e a formação musical
Entre 12 e 15 anos, durante o fenômeno Beatlemania, Lô formou com seu irmão Yé, Beto Guedes e Márcio Aquino o grupo “The Beavers”, dedicado exclusivamente ao repertório dos Beatles. Esta paixão pelo rock inglês moldaria sua identidade sonora única, criando pontes entre o progressivo britânico e as raízes musicais brasileiras.
O Clube da Esquina: Movimento que transformou a MPB
De volta ao Santa Tereza, Lô passou a se encontrar com amigos e irmãos na esquina entre as ruas Divinópolis e Paraisópolis. Milton continuava presente nas reuniões na casa dos Borges, onde nasceriam as ideias revolucionárias do Clube da Esquina.
Dona Maricota batizou carinhosamente o grupo que se reunia naquela esquina, dando origem ao nome do movimento. Dele participaram talentos como Milton Nascimento, Beto Guedes, Márcio Borges, Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Toninho Horta, Wagner Tiso e Flávio Venturini.
Aos 18 anos, prestes a ingressar no serviço militar, recebeu o convite de Milton para morar no Rio de Janeiro e gravar um álbum conjunto. A gravadora EMI-Odeon inicialmente resistiu à proposta de um disco duplo com um jovem desconhecido, mas mudou de ideia ao ouvir composições como “Um Girassol da Cor do Seu Cabelo”, “Trem Azul” e “Nuvem Cigana”.
1972: O Ano que mudou tudo
Clube da Esquina: Revolução sonora
Aos 20 anos, Lô lançou o histórico álbum duplo “Clube da Esquina” com Milton Nascimento. Com 21 faixas, a obra fusionou MPB, rock, jazz, bossa nova, folk e elementos clássicos de maneira pioneira.
A recepção inicial foi morna – críticos estranharam a combinação de Beatles com bossa nova, jazz e ritmos afro-latinos. Com o tempo, porém, o disco conquistou status de culto nacional e internacional.
O reconhecimento veio: em 2022, foi eleito o melhor álbum brasileiro de todos os tempos. A revista americana Paste Magazine o colocou em nono lugar entre os 300 melhores discos da história mundial, descrevendo-o como “retumbante e único” e “um dos projetos mais ricos já compostos na América do Sul”.
Entre os destaques de Lô estão “O Trem Azul”, “Tudo Que Você Podia Ser”, “Um Girassol da Cor do Seu Cabelo”, “Clube da Esquina nº 2”, “Para Lennon e McCartney”, “Paisagem da Janela”, “Trem de Doido” e “Nuvem Cigana”.
O lendário “Disco do Tênis”
Ainda em 1972, lançou seu primeiro trabalho solo, oficialmente chamado “Lô Borges”, mas eternizado como “Disco do Tênis”. O apelido surgiu da capa mostrando os tênis Adidas brancos do artista, fotografados por Cafi.
A gravadora rejeitou a ideia da capa, mas Lô foi irredutível: os tênis simbolizavam seu desejo de “cair na estrada”, libertando-se das obrigações contratuais. Após o lançamento, viajou de ônibus pelo Brasil, vendendo discos pessoalmente em praças de várias cidades.
Gravado rapidamente – pois Lô usara todas as composições no álbum com Milton – tornou-se referência da psicodelia brasileira, combinando experimentalismo, jazz, rock e MPB.
Cinco décadas de criação constante
Em mais de 50 anos de trajetória, Lô Borges construiu um catálogo de mais de 20 álbuns. Em 1978, participou de “Clube da Esquina 2” com “Ruas da Cidade” e “Pão e Água”. Em 1979, entregou “Via Láctea”, considerado essencial na música brasileira.
Os anos 1980 trouxeram sua primeira turnê nacional com “Sonho Real”. Nos anos 1990, “Dois Rios” (parceria com Samuel Rosa do Skank e Nando Reis) o reconectou com o grande público.
Produção prolífica nos últimos anos
Desde 2019, manteve ritmo impressionante: um álbum anual de inéditas, sempre com letras de um parceiro específico. Lançou “Rio da Lua” (2019), “Dínamo” (2020), “Muito Além do Fim” (2021), “Chama Viva” (2022), “Não Me Espere na Estação” (2023) e “Tobogã” (2024).
Em agosto de 2025, três meses antes de falecer, lançou “Céu de Giz – Lô Borges convida Zeca Baleiro”, com dez composições em parceria com Zeca Baleiro. Já tinha pronto “A estrada”, com letras de Márcio Borges, previsto para 2026 em celebração aos 80 anos do irmão.
Reconhecimento nacional e internacional
Suas composições foram interpretadas por gigantes como Tom Jobim, Elis Regina, Milton Nascimento, Flávio Venturini, Beto Guedes, Nenhum de Nós, Ira!, 14 Bis, Skank, Nando Reis e Elba Ramalho.
Em 2004, concorreu ao Grammy Latino (Melhor Canção em Língua Portuguesa) com “Dois Rios”. Em 2023, foi indicado novamente (Melhor Álbum de Rock ou Música Alternativa em Língua Portuguesa) por “Não Me Espere na Estação”.
No Spotify, alcançava quase 500 mil ouvintes mensais, com músicas atravessando gerações. Milton Nascimento celebrou publicamente a indicação ao Grammy 2023, reforçando os mais de 60 anos de parceria e amizade.
Vida pessoal e família
Deixa o filho Luca Borges, de 27 anos, e os irmãos Márcio, Telo, Marilton, Nico e Yé, todos ligados à música. Nunca se casou, preferindo viver cercado de violões, partituras e amigos músicos.
Márcio Borges foi seu principal parceiro, responsável por dois terços de sua obra e quem o incentivou desde criança. Mantinha vida tranquila em Belo Horizonte, dedicando-se à ginástica, natação e ao estúdio.
Os últimos momentos
Antes da internação, realizava a turnê “Esquinas & Canções” ao lado de Beto Guedes, celebrando décadas de parceria. Em 25 de outubro, Wagner Tiso o substituiu no show de Brasília. Toda agenda foi cancelada após a hospitalização.
A parceria com Beto Guedes, iniciada na infância com “The Beavers”, era especialmente significativa – ambos compunham a ala jovem do Clube da Esquina, conhecidos como “beatlemaníacos”.
O legado de um inovador
Lô Borges é o segundo integrante do Clube da Esquina a falecer, após Fernando Brant (2015). A música brasileira perde um de seus maiores inovadores, criador de uma fusão única que marcou gerações.
Sua capacidade de criar melodias singelas com harmonias sofisticadas o posicionou entre os maiores compositores do país. A influência do Clube da Esquina alcançou os Estados Unidos, onde músicos como Pat Metheny e Lyle Mays se tornaram admiradores, viajando a Minas Gerais para compreender a originalidade daquela sonoridade.
Como herança, deixa uma coleção de clássicos da MPB e uma carreira brilhante como a cor de um girassol – flor que inspirou um de seus maiores sucessos. Sua música continua influenciando novas gerações, consolidando seu lugar entre os gênios brasileiros que uniram poesia, inovação e sensibilidade em cada nota.
