No fim da década de 1970, o compositor Fernando Pellon se deparou com um panfleto que fazia propaganda de jazigos à venda em um cemitério na Zona Oeste do Rio de Janeiro. O que mais despertou a sua atenção é que mais parecia um desses lançamentos de empreendimentos imobiliários com a oferta de uma série de “serviços” à disposição dos futuros clientes.
Esse fato inspirou a letra do samba “Jardim da saudade”, uma belíssima paródia musical que Fernando Pellon criou e lançou no repertório do CD “Aço frio de um punhal”, em 2010, na voz da cantora Valéria Ferro.
Você se espanta comigo
Só porque comprei a prazo um abrigo
No Jardim da Saudade
Para a sua eternidade
“A inspiração para a música ‘Jardim da saudade’ veio de um panfleto de propaganda do fim da década de 70 sobre um empreendimento com essa denominação, o qual prometia algo como ‘memórias eternizadas em jardins deslumbrantes’. Na sociedade de serviços que caracteriza o mundo globalizado, o objetivo principal dessa empresa seria, portanto, fornecer serviços em vez de bens tangíveis como geladeiras ou automóveis. Ou seja, as necessidades dos clientes são atendidas por meio de atividades abstratas e cuja qualidade é avaliada por seus resultados, não por produtos físicos”, explicou Fernando Pellon.
A partir dessa observação, ele disse que sentiu a necessidade de realçar na letra do samba as características do tal empreendimento.
Condução pra lá é farta
Tem café, água gelada
Escada rolante, som ambiente
Refrigeração permanente
“Nesse aspecto, ‘Jardim da saudade’ constrói seu significado como uma evolução pelo diálogo com a canção ‘Parque industrial’, do álbum ‘Tropicália’, composta por Tom Zé, na qual se critica o consumo como caminho para a felicidade, assim como o ideal da salvação pelo progresso industrial promovido pela ditadura militar (‘pois já temos o sorriso engarrafado, já vem pronto e tabelado, é somente requentar e usar’)”, afirmou.
Irreverência
Não foi à toa que Fernando Pellon foi citado por Aldir Blanc como um mestre da canção extraordinário e autor de composições “diferentes de tudo que rola por aí com máscara de muderno”.
A timidez no trato pessoal não revela de imediato a personalidade irreverente de Fernando Pellon que se apresenta por meio das suas composições. Mas quem ouve quaisquer músicas do seu repertório logo percebe o que Aldir Blanc quis dizer a respeito do seu raro talento poético-musical.
O samba “Jardim da saudade” é uma dessas composições e acabou sendo escolhida para fazer parte da trilha sonora do filme documentário “É Miquelina, minha mulher” da roteirista Fátima Lannes.
E como sempre a morte desperta as criações poéticas nas canções de Fernando Pellon, em “Jardim da saudade”, que foi literalmente inspirada na suposta oferta de conforto para um corpo sem vida, não podia ser diferente.
Especificamente no caso de “Jardim da saudade”, disse o compositor, a alusão à morte se faz segundo a menção de Oswald de Andrade a um dos crimes cometidos pelos Estados Unidos no “imenso combate contemporâneo”.
“Com efeito, segundo ele, ‘é na América que está criado o clima do mundo lúdico e o clima do mundo técnico aberto para o futuro’. Senão, vejamos: ‘já existem as casas serenas para onde se conduz o extinto entre jardins floridos, absolutamente libertos da austeridade funerária do passado’, exatamente como preconizava o panfleto de propaganda do ‘Jardim da saudade’, em que memórias são eternizadas em jardins deslumbrantes”, observou o compositor.
Crítica e ironia
Fernando Pellon é mestre da criação artística que explora temas que para muita gente são dolorosos. Mas usa isso como um ativista que acredita que a arte é um instrumento que deve despertar o censo crítico comum.
“Assim, a música ‘Jardim da saudade’ aparece também como crítica, à medida que o clima lúdico é usado para tornar a experiência da morte mais leve, envolvente e positiva para os clientes com recursos para tanto”, disse Fernando Pellon lembrando mais uma citação de Oswald de Andrade: “Qualquer recém-vindo a uma cidade que pretenda habitar recebe não só a caderneta do empório como a proposta de pagamento a prestações de seu próprio enterro”.
Como já é do seu estilo, no samba “Jardim da saudade” Fernando Pellon consegue encontrar graça e leveza para explorar um assunto como a morte que geralmente remete à tristeza. E ganha aplausos em um nicho muito significativo de consumidores de música que brota do contexto da chamada arte livre. “A demanda por um modo mais experimental de se produzir música popular brasileira”, destacou.
Na letra de “Jardim da saudade”, Fernando Pellon usou “uma fina ironia” como crítica à ideia de que rituais fúnebres, em vez de um momento de despedida, se tornaram um mercado a mais de serviços comercializados.
Um conceito que ele encontrou também em Oswald de Andrade, quando este escreveu que “todo o aparato horrorífico da morte cristã, que prenunciava o terror do juízo final, toda a prática funerária do Cristianismo que entreabria a porta do inferno sob altares e tocheiros, desaparece ante o mundo lúdico que se anuncia”.
“Essa abordagem oswaldiana está presente no curta-metragem da Fátima Lannes, onde ‘Jardim da saudade’ aparece na trilha sonora”, destacou Fernando Pellon a respeito do filme da sua parceira do então coletivo de artistas Malta da Areia, base do início da sua carreira artística, no qual ele a roteirista esteve envolvidos nos anos 1980.
Acesse o link para ouvir “Jardim da saudade”: https://open.spotify.com/intl-pt/track/4oTKe0ZCTBqL5CVaC5Yj4r?si=da17bef5e9ea453c
