Busão circula pelas praças do Rio de Janeiro para mostrar, com arte e ciência, a diversidade que há em cada ser humano
O universo de fungos e bactérias é explorado em mostra interativa que trata da própria condição da vida
O pintor Paul Klee definiu arte como uma forma de “tornar visível o invisível”. A frase ganha outro sentido no Busão das Artes, na verdade um caminhão de 15 metros adaptado para receber experimentos interativos de abordagem científica e projetos de artes visuais, que começa a circular pelas ruas do Rio em 30 de novembro.
A idealização é do curador e criador interdisciplinar Marcello Dantas em parceria com o físico Luiz Alberto Rezende de Oliveira, ex-curador do Museu do Amanhã. O Busão é um projeto realizado por três mulheres: Renata Lima, que dirige a Das Lima Produções; e a dupla Lilian Pieroni e Luciana Levacov, da Carioca DNA.
A iniciativa apresenta duas vertentes: uma ambiental, que trata das bactérias e de seu papel em nosso ecossistema; e outra científica, que aborda nosso conhecimento sobre o organismo humano. E quem guia o visitante por esse universo tão rico e pouco explorado está invisível aos olhos: fungos e bactérias.
Quem for ao “Busão” vai descobrir, com uma pitada de humor, que há mais de um quatrilhão de bactérias na Terra, dos quais 100 bilhões habitam o corpo humano, e 99,99% ainda sequer foram descobertas. Entre os pontos previstos de parada, estão a Praça Mauá, o Parque Madureira e a Praça Santos Dumont.
“O Busão das Artes nasceu da força de vontade da CariocaDNA e da Das Lima em educar, humanizar e sensibilizar, abordando dois temas urgentes e atuais: ciência e meio ambiente. Esse projeto acontece em praças e outros espaços públicos, gratuitamente, e está aberto a todes. Uma equipe capacitada de mediadores e arte educadores irá atender e aprofundar os conteúdos apresentados. Procuramos sempre buscar qualidade de vida e tornar a cidade um ambiente vivo”, afirma Luciana Levacov.
Dantas destaca que, em razão da pandemia do Covid-19, as pessoas acabaram aprendendo mais sobre uma série de processos não perceptíveis a olho nu, mas que mudam o curso da história. Essa dimensão microbial, seja do fungo, da bactéria ou do vírus, está ativa e tem muito a nos dizer: “É preciso inocular na cabeça das pessoas a consciência sobre essas dinâmicas e usar a arte como plataforma para entender as forças que estão em constante relação”, afirma o curador.
Oliveira complementa: “Nesse jogo da dinâmica da existência proposto por Dantas, a principal força é a luta ancestral entre fungos e bactérias, que estão relacionados ao início e ao fim da vida. E é esse conceito que o Busão pretende divulgar, de maneira lúdica e bem humorada. Não nos damos conta de que temos mais bactérias no organismo do que há estrelas no céu”, diz.
Ou seja, ao falar de fungos e bactérias, o Busão traz a diversidade para o centro da discussão, partindo do próprio conceito da existência. Oliveira lembra que, até 1995, os biólogos pensavam que uma floresta era uma coleção de árvores e que os indivíduos árvores se definiam pela sua singularidade, independente de tudo que os rodeava. Hoje, a ciência assegura que há uma rede de fungos subterrânea que conecta os vegetais e transforma essa coleção em uma sociedade, de tal maneira, que as árvores mais velhas cuidam das mais novas e as saudáveis auxiliam as doentes. E isso vale para qualquer ser vivo, de acordo com o físico.
“Nós não apenas pertencemos a um ecossistema, como cada um de nós é em si um ecossistema. O Busão traz a proposta de funcionar como uma espécie de realfabetização sensorial e cognitiva, para apresentar um conceito original do século XXI: a diversidade integra unidades. Não podemos falar apenas em seres diversos. Cada um desses seres é, em si, uma fonte de diversidade”, analisa Dantas.
Na prática, como isso se traduz? Quem for ao Busão poderá conferir, por exemplo, a mais completa biometria de um ser humano: a microflora do umbigo (mais identitária do que qualquer outra forma de tornar único um indivíduo). Ela está representada nas fotos do artista plástico Vik Muniz que, em parceria com o engenheiro biomédico Tal Danino, fez retratos bacteriológicos de personalidades brasileiras.
Já o artista Jaider Esbell (1979-2021), indígena da etnia Macuxi, apresenta a obra “A vida vem da luz invisível — Os povos que moram no nosso corpo”. Produzido especialmente para o Busão, com 120×140 cm, o trabalho faz alusão à constante metamorfose que é a vida.
“É um trabalho que faz pensar que, para além da nossa vida e do nosso pensamento, há uma infinidade de outras formas de vidas tão complexas e interativas no mundo, sem que nos demos conta”, reflete Esbell*, que concorre ao Prêmio Pipa esse ano, após tê-lo recebido em 2016. (*O release foi apurado dias antes da morte do artista, em 2 de novembro deste ano.)
Outra artista, Suzana Queiroga, propõe um mergulho no habitat das bactérias, com uma instalação que permitirá ao visitante interagir com uma simulação do ambiente desses seres microscópicos. Com recortes em placas de policarbonato alveolar em cores translúcidas, ela construiu uma obra que terá cerca de 270x189x210m. Suzana mesclou o conceito das placas de Petri — usadas para o cultivo e análise de microorganismos em laboratório — com a proposta de sua série “O mundo segue indiferente a nós”. Através da superposição de layers de papeis coloridos, a artista visual carioca trabalha a ideia de redes diversas, desde os neurônios até as tramas das cidades, os fluxos dos líquidos, a diversidade dos desenhos moleculares, a microbiologia e o tecido cósmico.
“Meu desejo é tornar tridimensional o universo da microbiologia, especificamente o das bactérias, e trazer para a escala urbana e para a experiência do olhar. Quero trabalhar a ideia de sermos ecossistemas ambulantes em que convivem diversos reinos em harmonia, guerra e/ou colaboração”, explica a artista.
No Busão, também será possível saber quanto pesam os micróbios existentes no organismo de um indivíduo, através de uma balança que calcula o peso não-humano. Sem falar no trabalho do artista Walmor Correa, que envolve de forma bem-humorada sereias e pikaias. Pikaias? Sim uma espécie de animal marinho que viveu há cerca de 500 milhões de anos, no período Cambriano. Deste curioso cruzamento entre lenda e ciência, surge “O beijo da pikaia”.
“Idealizei o encontro, em alto mar, entre duas pikaias; imaginei o contato das antenas e das bocas; imaginei até mesmo um beijo ou, numa abordagem menos romântica, a primeira troca de bactérias. É interessante pensar que, em dez segundos de um beijo, permutamos cerca de 80 milhões de bactérias. E, de acordo com especialistas, isso quase sempre é bom, porque as bactérias da chamada microbiota garantem um funcionamento melhor do organismo”, conta Corrêa.
Com tantos conceitos novos em discussão, é possível que o Busão deixe mais dúvidas do que certezas. Pensando nisso, na parte externa, haverá recipientes com perguntas, para que os visitantes possam refletir sobre o que viram e sobre a própria condição humana: “Só somos humanos, porque somos inumanos”, provoca Luiz Alberto.
Dantas observa que, nas relações com outro indivíduo soma-se um acontecimento psicológico, um social e um bacteriológico que não podem ser ignorados. Uma frase do poeta Wally Salomão, instalada no Busão, dá a medida do que os curadores querem dizer: “Entre o ser alheio e o meu ser, a minha fronteira se rompeu”.
“Estamos em uma zona de profunda interpelação. Se não entendermos isso para o bem e para o mal, não vamos entender nada da vida”, afirma Marcello.
Para os criadores do Busão, a ideia de circular por praças da cidade traz novos elementos de análise. Eles consideram estes espaços públicos um local de conversa em que, pela diversidade de seus frequentadores, há uma intensa troca bacteriológica: ‘”Esta é a dimensão ética e política do Busão. Ao não colocar fronteiras entre a ciência e a arte, e criar diálogo com as pessoas estamos também propondo uma revisão do próprio sentido de cidadania”, finaliza Oliveira.
Luiz Alberto Rezende de Oliveira
Físico, doutor em Cosmologia, foi pesquisador do Instituto de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica (ICRA-BR) do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF/MCTI), onde também atuou como professor de História e Filosofia da Ciência. Professor, palestrante e consultor de diversas instituições, foi curador do Museu do Amanhã do Rio de Janeiro.
Marcello Dantas
Criador interdisciplinar, trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia, produzindo exposições, museus e múltiplos projetos que buscam proporcionar experiências de imersão por meio dos sentidos e da percepção. Esteve por trás da concepção de diversos museus, entre os quais o Museu da Língua Portuguesa e a Japan House, em São Paulo; o Museu do Homem Americano e o Museu da Natureza, no Piauí; e o Museu do Caribe, na Colômbia. Assinou a curadoria de exposições de artistas estrangeiros de renome como Ai Weiwei, Anish Kapoor, Jenny Holzer, Michelangelo Pistoletto, Peter Greenaway, Rebecca Horn, Bill Viola e Laurie Anderson. Foi também diretor artístico do Pavilhão do Brasil na Expo Shanghai 2010; do Pavilhão do Brasil na Rio+20; e da Estação Pelé, em Berlim, na Copa do Mundo de 2006. Integra o corpo de curadoria da Bienal de Vancouver desde 2014.
SERVIÇO:
Busão das Artes
Início: 30 de novembro de 2021
Encerramento: 24 de fevereiro de 2022
Horário de funcionamento: das 9h às 17h
Horários das visitas agendadas: das 9h às 11h e das 15h às 17h
Entrada gratuita
Parada 1: Praça Santos Dumont
30/nov/2021 a 03/dez/2021 – terça a sexta
09 /dez/2021 a 12/dez/2021 – quinta a domingo
14/dez/2021 a 17/dez/2021 – terça a sexta
Parada 2: Parque Madureira
06/jan/2022 a 09/jan/2022 – quinta a domingo
13/jan/2022 a 16/jan/2022 – quinta a domingo
27/jan/2022 a 30/jan/2022 – quinta a domingo
03/fev/2022 a 06/fev/2022 – quinta a domingo
Parada 3: Praça Mauá
10/fev/2022 a 13/fev/2022 – quinta a domingo
16/fev/2022 a 19/fev/2022 – quarta a sábado
21/fev/2022 a 24/fev/2022 – segunda a quinta