Entre a segunda metade do século XIX e o início do século XX, o Rio de Janeiro foi o epicentro da chegada de mais de 2 milhões de pessoas negras escravizadas no Brasil. O documentário “Rio, Negro”, da Quiprocó Filmes, distribuído pela Pipa Pictures, e com estreia nacional marcada para 2 de março de 2023, aborda e demarca – por meio de entrevistas com grandes personalidades e intelectuais cariocas, além de imagens históricas – os processos sociais, políticos e as profundas transformações ocorridas naquele período no Rio devido à presença e à influência de pessoas negras de origem africana.
Trazendo uma perspectiva afrocentrada sobre a formação da cidade, o documentário revela o protagonismo individual e coletivo da população negra, bem como a perseguição institucional que culmina na transferência da capital para Brasília também como uma estratégia de apagamento desta população. “Rio, Negro” apresenta argumentos históricos inéditos que articulam o ideário racista que molda nossas relações sociais, a mudança da capitalidade nacional e os efeitos políticos decorrentes desse processo sobre o Rio de Janeiro.
Com roteiro e direção de Fernando Sousa e Gabriel Barbosa, o longa conta com depoimentos de importantes ativistas do movimento negro, artistas, arquitetos e outros pensadores da cidade, tais como o ator Haroldo Costa, o escritor Luiz Antonio Simas, a vereadora Tainá de Paula, o carnavalesco Leandro Vieira, o ritmista Eryck Quirino, a atriz Juliana França, a ialorixá Mãe Meninazinha de Oxum, a historiadora Ynaê Lopes, os pesquisadores Christian Lynch, Nielson Bezerra e Eduardo Possidonio, entre outros.
Financiado pela Casa Fluminense, organização carioca que constrói coletivamente políticas e ações para a Região Metropolitana do Rio de Janeiro e que, pela primeira vez, decidiu investir num filme, entendendo a relevância de contar essa história sob o olhar da população negra, “Rio, Negro” vem evidenciar os capoeiristas, sambistas, tias baianas, malandros, barqueiros e diversos outros personagens que forjaram o Rio e seus movimentos culturais, sociais, religiosos e de saberes.
“Em Rio, Negro, o período de transição entre a monarquia e a república é tratado como um momento crucial para a vida social e política da cidade. Foi também quando a população urbana pobre e preta se consolidou, se organizou e foi amplamente acossada pelo Estado. O filme vem pensar a cidade a partir da presença e contribuição dessa população, responsável pelo nosso modo de ser, nossa linguagem falada e corporal, nossas crenças, entre tantas outras características marcantes presentes no nosso cotidiano”, diz o diretor e roteirista Fernando Sousa.
Oprimida pelas instituições, a população negra oriunda de diferentes países da África era maioria naquele período. Assim, o Rio de Janeiro reunia negros alforriados, negros que ainda chegavam, seus descendentes, e por consequência, todas as práticas culturais, especialmente as práticas africanas herdadas, desenvolvidas e consolidadas ao longo do tempo, como o samba e o carnaval, fundamentais para o restabelecimento dos laços comunitários e para a construção de novas tecnologias e conhecimentos.
Ao mesmo tempo em que reconstitui essa contribuição, o doc mostra o movimento institucional de “embranquecer” e “civilizar” a cidade por meio da assimilação de modelos urbanísticos e arquitetônicos das metrópoles europeias, sobretudo os de Paris, em detrimento das influências africana e lusitana. Veremos, por exemplo, que a eliminação de cortiços, da região portuária da Pequena África e do morro do Castelo dos espaços urbanos fazem parte desta estratégia.
Apesar de recontar essa história, marcada por muita dor, o diretor e roteirista Gabriel Barbosa enfatiza que “Rio, Negro” traz uma perspectiva diferente:
“É fundamental criar novas narrativas e inverter esse olhar do suplício e do açoite que é constantemente associado à história da população negra. Em ‘Rio, Negro’ invertemos essa lógica, abordando outros olhares como a sofisticação estética e a contribuição destas pessoas em campos como a arte, a ciência, a gastronomia, a linguagem”, diz.
Filme mostra que transferência da capital para Brasília também foi estratégia racista e de apagamento da população negra
O marco narrativo de “Rio, Negro” culmina com a transferência da capital do país para o Centro-Oeste, na década de 1960, com a construção de Brasília. A transferência da capital já era prevista na Constituição de 1891 para trazer modernização e uma suposta segurança e estabilidade política na sede do poder.
A mudança, de fato, só veio a ocorrer em 1960, deixando o Rio de Janeiro sem qualquer projeto ou política pública direcionada às pessoas que dependiam do movimento da capital, especialmente as pessoas negras, constantemente excluídas dos processos de tomada de decisão. O documentário também expõe os argumentos racistas que deram base à transferência.
“No processo de pesquisa, nos debruçamos sobre este ponto e chegamos a uma série de registros e documentos que expõem argumentos racistas. Há documentos, sobretudo da Missão Cruls, que foi a primeira expedição à região central do Brasil realizada no final do século XIX com o objetivo de preparar a transferência, além de registros do livro “Quando Mudam as Capitais”, escrito por José Osvaldo de Meira Penna, um dos principais ideólogos de Juscelino Kubitschek, que citam justificativas racistas para embasar e legitimar a transferência da capital”, afirma Fernando Sousa.
Casa Fluminense: em iniciativa inédita, organização apresenta “Rio, Negro” por acreditar na importância e na urgência de se contar esta história
Trazendo uma perspectiva afrocentrada sobre a formação da cidade, “Rio, Negro” é a primeira produção cinematográfica de longa-metragem apresentada pela Casa Fluminense, organização da sociedade civil criada em 2013 para fomentar e criar ações efetivas voltadas à promoção de igualdade, ao aprofundamento democrático e ao desenvolvimento sustentável do Rio de Janeiro.
Para Henrique Silveira, co-fundador da Casa Fluminense, o filme, sendo um produto cultural, possui essa capacidade de sensibilizar e dialogar com as pessoas, ampliando o alcance e o impacto da mensagem:
“O racismo estrutural organiza a memória oficial a partir de uma perspectiva branca, ocultando as lutas da população negra por justiça, a sua história e seus protagonistas. Por isso a Lei 10.639, que determina o ensino da história da África e dos negros no Brasil, é tão importante. Com o filme queremos apresentar a história do Rio de Janeiro a partir da perspectiva negra, revelando que o projeto da República para essa população sempre foi a exclusão, criminalização, violência e embranquecimento. Por outro lado, foi nas brechas dessa sociedade racista que a população negra marcou profundamente a sociedade brasileira com sua arte, cultura e humanidade”, explica.
Prestes a completar 10 anos de intenso trabalho, a Casa Fluminense vê o projeto também como uma forma de despertar o pensamento crítico para novas reflexões sobre o passado para, consequentemente, entendermos o presente e o futuro da cidade, bem como a influência da população negra nesses cenários.
“Ao longo dos seus 10 anos, a Casa Fluminense enegreceu a sua equipe executiva, seu Conselho de Governança e o seu programa. Esta foi uma mudança estratégica, pois só é possível construir uma agenda de justiça social se compreendermos o peso do racismo estrutural na reprodução das desigualdades em nossa sociedade. Com essa premissa, o filme joga luz sobre a contribuição dos negros para a formação social do Rio de Janeiro no início do século XX e a mudança da capital federal para Brasília em 1960. São dois fatos históricos fundamentais para compreender os desafios contemporâneos do Rio de Janeiro, como violência urbana e desenvolvimento socioeconômico. Entendemos os movimentos e coletivos negros conquistaram espaço no debate público para a questão racial esperamos que o filme possa contribuir nas pautas de justiça, memória e reparação”, afirma Larissa Amorim, coordenadora executiva da Casa.
Sinopse: Rio, Negro é um documentário que apresenta um olhar possível para a história do Rio de Janeiro, assentado na presença e contribuição da população negra de origem africana na formação da cidade. A partir de entrevistas e amplo material de arquivo, a narrativa busca desvelar como a população negra forjou trajetórias individuais e laços comunitários em uma cidade-diáspora marcada pelas disputas em torno do projeto “civilizatório” das elites brancas. Rio, Negro confere centralidade a esse debate, articulando o ideário racista, a transferência da capital para Brasília e suas consequências político-institucionais para o Rio de Janeiro.
FICHA TÉCNICA:
- Direção e Roteiro | Fernando Sousa & Gabriel Barbosa
- Assistentes de Direção | Daila Ferreira & Laura Aguiar
- Produção Executiva | Fernando Sousa
- Produtores Associados | Henrique Silveira & Wania Sant’Anna
- Pesquisa de conteúdo | Alessandra Schimite, Fernando Sousa & Gabriel Barbosa
- Pesquisa e licenciamento de arquivo | Alessandra Schimite
- Direção de Fotografia | Laís Dantas
- 1º Assistente de Câmera | Renan Herison
- 2º Assistente de Câmera/Logger | Júlia Camargo
- Operadores de Câmera | Laís Dantas e Renan Herison
- Vídeo Assist | Albert Ribeiro
- Operador de movimento | Edvaldo Neto
- Gaffers | Tainã Miranda & Jon Thomaz
- Direção de áudio | Vilson Almeida
- Técnico de som direto | Antonio Carlos V. Da Silva (DMC)
- Direção de Produção | Luana Fraga
- Assistente de Produção | Felipe Dutra
- Fotografia Still | Elisângela Leite
- Direção de arte | Caroline Meirelles
- Assistente de Direção de Arte | Patrícia Fuentes
- Contra-regra | David Cabelinho
- Figurino | Greice Simpatia e Espaço Afro Obìnrin Odara
- Costureira bandeira Okê Arô | Aurora Galonete Rodrigues
- Produtora de Transporte | Ana Acioli
- Produtora de Transporte Assistente | Ana Clara da Silva
- Seguranças | Alcyr Lauduger e Marco Porto
- Motoristas | Eliacibes Torezani Alcântara de Oliveira, Rodrigo Busquet Valentino da Costa e Rosinaldo Nascimento dos Santos
- Coordenação de Pós-Produção | Felipe Bretas – Multiphocus
- Produção de Pós-Produção | Dora Motta
- Montagem e edição | Eduardo Braz, Gabriel Barbosa, edt. e Thomaz Tarre, edt.
- Videografismo | Bragga
- Colorista | Renan Castelo Branco
- Edição e mixagem de som | Thiago Santos
- Trilha sonora original | Muato
- Música de abertura | A Voz do Morro, Zé Ketti
- Catering | Boteco do Seu França
- Assessoria de imprensa | Mario Camelo
- Cartaz | Antônio Gonzaga
- Controller | Zélia Balbina
- Assessoria Jurídica | Daniel Law
Elenco | em ordem de aparição
- Juliana França
- Átila Bee
- Álvaro Pereira Nascimento
- Ynaê Lopes dos Santos
- Eduardo Possidonio
- Carlos Eugênio
- Nielson Bezerra
- Christian Lynch
- Mãe Meninazinha de Oxum
- Antonio Edmilson
- Luiz Antonio Simas
- Tainá de Paula
- Eryck Quirino
- Haroldo Costa
- Vinícius Natal
- Leandro Vieira
- Helena Theodoro
- Mauro Osório
- Henrique Silveira