A Netflix continua demonstrando que acredita no potencial das produções brasileiras. Após sucessos internacionais como Pssica e Bom Dia, Verônica (que conquistaram audiências globais e elogios da crítica especializada), a plataforma agora aposta suas fichas em Os Donos do Jogo, série que estreia no dia 29 de outubro explorando o fascinante e perigoso universo do Jogo do Bicho no Rio de Janeiro.
Esta nova investida reforça uma tendência que já vínhamos observando: as produções brasileiras têm alcançado um patamar de qualidade técnica e narrativa que as torna competitivas no mercado mundial. Os Donos do Jogo promete seguir essa linha ascendente, trazendo para as telas uma história recheada de drama familiar, crime organizado e disputas pelo poder.
O retrato de uma contravenção que marca a história brasileira
Para entender a relevância desta série, é fundamental conhecer as origens do Jogo do Bicho. Criado em 1892 pelo Barão João Batista Viana Drummond como uma atração para aumentar a arrecadação do Jardim Zoológico de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, o jogo nasceu de forma completamente legal. A primeira extração aconteceu em 3 de julho de 1892, com o avestruz como animal sorteado. Os visitantes recebiam bilhetes com figuras de 25 animais diferentes que participavam de sorteios diários.
O sucesso foi imediato e arrebatador. O que começou como uma simples estratégia de marketing rapidamente se transformou em um fenômeno popular que extrapolou os muros do zoológico, espalhando-se pela cidade através de intermediários e comerciantes. Em 1895, após pressão popular e o crescimento descontrolado do jogo clandestino, o prefeito Furquim Werneck de Almeida rescindiu o contrato e proibiu a atividade.
A criminalização foi gradual e severa. Em 1899, a Lei nº 628 introduziu penas de prisão para jogos de azar. Em 1932, durante a Era Vargas, o Decreto-Lei nº 21.143 classificou o jogo como contravenção penal, tornando-o inafiançável. O golpe final veio em 1946, quando o presidente Eurico Gaspar Dutra promulgou o Decreto-Lei nº 9.215, proibindo definitivamente todos os jogos de azar no Brasil.
Mas a proibição não extinguiu a prática. Pelo contrário, estruturou-se como um negócio ilícito organizado por “banqueiros do bicho” que dominaram territórios e construíram verdadeiros impérios. Segundo o Instituto Jogo Legal, atualmente o Jogo do Bicho movimenta R$ 12 bilhões anuais no país, operando através de 350 mil pontos de apostas clandestinas (quase 28 vezes mais que as 12.600 lotéricas oficiais da Caixa).
A evolução para uma máfia organizada

Principias Banqueiros do Bicho do Rio no Documentário Vale o Escrito – reprodução Globoplay
No Rio de Janeiro, berço da contravenção, o jogo se organizou como um verdadeiro empreendimento capitalista. A partir da década de 1970, formou-se uma cúpula comandada por banqueiros lendários como Castor de Andrade, José Caruzzo Escafura (o Piruinha), Miro e Maninho Garcia (pai e filho ), Ângelo Maria Longa (o famoso “Tio Patinhas”), Rafael Palermo, Haroldo Rodrigues Nunes e tantos outros nomes. Esses homens não apenas controlavam territórios bem definidos na capital e Baixada Fluminense, mas também criaram o sistema “Paratodos” (uma redistribuição de apostas que garantia estabilidade financeira e reduzia conflitos).
A influência desses personagens extrapolou o mundo do crime. Tornaram-se figuras centrais na sociedade carioca, especialmente como patronos das escolas de samba após a fundação da Liga Independente das Escolas de Samba nos anos 1980. Era comum vê-los desfilando no Carnaval, ostentando poder e riqueza conquistados através da contravenção.
A estrutura se espalhou pelo país com características regionais distintas. Em São Paulo, Ivo Noal se tornou o “il capo di tutti capi“, controlando um império estimado em R$ 561 milhões no início dos anos 2000. Na Paraíba, curiosamente, o jogo foi legalizado em 1967 pelo governador João Agripino Maia, sendo o único estado brasileiro onde a atividade opera oficialmente através da Lotep. No Nordeste, consórcios como o “Paratodos” baiano, formado por 43 banqueiros, chegaram a empregar dezenas de milhares de colaboradores, oferecendo até planos de saúde.
Elenco de peso e uma trama de poder familiar
A série Os Donos do Jogo conta com um elenco impressionante que mistura veteranos e novos talentos. Juliana Paes interpreta Leila Fernandez, esposa do capo Galego Fernandez (Chico Díaz), representando a Velha Guarda do Bicho. André Lamoglia dá vida ao protagonista Profeta, jovem ambicioso da família Moraes que busca ascender na hierarquia do crime organizado. Xamã interpreta Búfalo, que assume os negócios da família Guerra após se casar com Suzana (Giullia Buscacio), enquanto Mel Maia vive Mirna Guerra, irmã de Suzana com planos próprios para o império familiar.
A narrativa promete ser explosiva, estruturada em torno de quatro famílias em guerra pelo controle territorial. A família Moraes, do interior fluminense, tem em Profeta seu membro mais ambicioso, apoiado pelo irmão Esqueleto e pelo aliado Sombra. Os Guerra simbolizam a nova geração que quer modernizar o jogo, mas enfrentam rivalidade interna mortal entre as irmãs Suzana e Mirna pelo comando dos negócios.
Já os Fernandez representam a tradição e o poder estabelecido, com Galego e Leila tentando manter sua supremacia diante das ameaças crescentes. Por fim, a família Saad vive um momento de transição, com o herdeiro Renzo preso e o tio Marcinho assumindo temporariamente o comando, intermediando decisões junto à cúpula onde possui forte influência.
Ficção que espelha uma realidade brutal
Diferentemente de outras abordagens documentais sobre o tema, Os Donos do Jogo é uma obra completamente ficcional, mas que não se distancia da realidade crua desse universo. Como explicou Haná Vaisman, diretora de conteúdo para séries da Netflix Brasil, em entrevista ao Metrópoles: “É uma série que tem bastante história, clima de magia e jogo, mas também uma dose bem alta de melodrama, com briga familiar, traições, política, sedução… São vários ingredientes que o brasileiro gosta.“
A escolha por uma narrativa ficcional permite que os roteiristas Bernardo Barcellos, Mariana Torres, Luciana Pessanha, Rafael Spínola e Rosana Rodini explorem sem constrangimentos os aspectos mais sombrios dessa atividade. O mundo real do Jogo do Bicho é marcado por disputas sangrentas pelo controle territorial, como as que ocorreram no Rio de Janeiro após a morte dos chefes dos clãs Andrade (1997) e Garcia (2004), gerando confrontos violentos entre bicheiros, traficantes e milicianos.
A direção de Heitor Dhalia, conhecido por trabalhos como O Cheiro do Ralo e DNA do Crime, promete entregar uma narrativa sofisticada que captura essa atmosfera de tensão constante. A produção da Paranoid em parceria com a Netflix investiu pesado em qualidade técnica, seguindo o padrão internacional que tem caracterizado as séries brasileiras de sucesso da plataforma.
O declínio de um império e novas disputas
Embora ainda movimente bilhões, o Jogo do Bicho vem perdendo força nas últimas décadas. Segundo dados da Fundação Getúlio Vargas, o faturamento semanal no Rio de Janeiro despencou de R$ 1 milhão para R$ 100 mil entre 2005 e 2025. A concorrência acirrada vem dos jogos legais da Caixa Econômica Federal, das máquinas caça-níqueis controladas pelo crime organizado desde os anos 1970, e mais recentemente das casas de apostas esportivas online.
Essa transformação no cenário não eliminou as disputas pelo controle territorial, pelo contrário, intensificou. Hoje, além dos bicheiros tradicionais, traficantes, milicianos e até facções como o Primeiro Comando da Capital e Comando Vermelho disputam esses mercados ilícitos em diversas regiões do Brasil. É exatamente nesse contexto de transformação e guerra pelo poder que Os Donos do Jogo encontra seu combustível narrativo.
Uma aposta certeira no drama brasileiro
Os Donos do Jogo chega em um momento estratégico para a Netflix, que tem encontrado no Brasil uma fonte inesgotável de histórias autênticas e universais. A escolha do Jogo do Bicho como pano de fundo é inteligente: trata-se de um tema que desperta curiosidade tanto do público nacional quanto internacional, oferecendo uma janela única para compreender aspectos da sociedade brasileira que misturam tradição, criminalidade e poder.
A expectativa é naturalmente alta, especialmente considerando o histórico recente de sucessos brasileiros na plataforma. Se Os Donos do Jogo conseguir capturar a complexidade desse universo com a mesma qualidade técnica e narrativa de suas antecessoras, certamente será mais um título a representar o audiovisual brasileiro no cenário global. Mais que entretenimento, a série promete ser um retrato fascinante de como o crime organizado se estrutura, sobrevive e evolui na sociedade brasileira, provando definitivamente que nossas histórias têm o potencial de conquistar corações e mentes mundo afora.
Eu que sou carioca e, como todo carioca, vejo um ‘ponto de bicho’ em cada esquina, sabe como são essas ‘guerras de poder’ e como, na maioria das vezes, é a grande população que sofre. É difícil imaginar alguém que nasceu e cresceu no Rio de Janeiro que nunca tenha ouvido falar das Guerras do Bicho, dos ‘patronos das escolas de Samba’, que conheça alguém que trabalhe com isso ou que simplesmente perdeu alguém para toda essa criminalização.
Só acho estranho, que no Brasil, onde os Cassinos foram proibidos e Jogo do Bicho é contravenção, o governo deixe tantas ‘Bets’ destruírem a vida de brasileiros trabalhadores que ficam viciados em apostar cada vez mais. Porque se existe uma coisa que aprendemos com os norte-americanos vendo filmes e séries de Vegas é que: a banca, sempre vence!
Os Donos do Jogo estreia dia 29 de outubro na Netflix! (confesso, estou ansiosa para assistir)
Confira os teasers oficiais da Netflix apresentando as ‘famílias do Bicho’:

Carioca com alma paulista. Jornalista Digital, Assessora de Imprensa, Escritora, Blogueira e Nerd. Viciada em séries de TV, chocolate, coxinha & Pepsi. Segue no Insta: @poltronatv.ofc