Em uma conversa reveladora, Fernanda Dias compartilha as raízes profundas e as motivações por trás de “Meus Cabelos de Baobá”, um espetáculo teatral que emerge como um potente veículo de expressão da identidade negra feminina. Inspirada em suas experiências pessoais, bem como nas histórias de vida de mulheres negras ao seu redor, incluindo figuras familiares marcantes como sua mãe, irmã e avó paterna, Dias destaca a importância de trazer essas narrativas para o primeiro plano. A jornada criativa de Dias ganhou um ímpeto decisivo após sua estadia no Senegal em 2015, onde estudou na Ecole des Sables, fortalecendo ainda mais sua determinação em criar um espaço de representatividade e empoderamento através da arte.
Confrontando e superando desafios significativos no desenvolvimento da peça, especialmente em relação à criação de uma linguagem cênica distinta, Fernanda ressalta o papel crucial da colaboração e do apoio de colegas artistas e mentores. A direção de Vilma Melo, junto com a inspiração de figuras influentes como Barbara Santos e a rica herança das danças africanas, foram essenciais para moldar a estética e a mensagem do espetáculo. “Meus Cabelos de Baobá” não é apenas um espetáculo; é um manifesto artístico que desafia estereótipos, celebra a cultura africana e afro-brasileira, e promove um diálogo essencial sobre racismo, representatividade e empoderamento feminino.
Como surgiu a ideia e qual foi a inspiração inicial para o espetáculo “Meus Cabelos de Baobá”?
O espetáculo nasce do desejo de trazer para a cena, histórias de mulheres negras, contadas por elas mesmas. A inspiração brota a partir de minhas próprias experiências e das experiências de outras tantas mulheres que me acompanharam e me acompanham na trajetória da vida principalmente minha mãe, minha irmã e minha avó paterna. Após minha viajem p Senegal em 2015, quando fui estudar dança na Ecole des Sables, essa ideia ganha impulso e macerada a várias mãos nasce Meus Cabelos de Baobá.
Quais foram os maiores desafios que você enfrentou ao trazer a estética e narrativa de “Meus Cabelos de Baobá” para o palco, especialmente ao desenvolver sua linguagem cênica única?
O maior desafio foi me sentir CAPAZ de tal feito pois diariamente, uma série de engrenagens e estratégias são criadas, para que pessoas como eu, não se sintam competentes para avançar, para vislumbrar outras perspectivas de vida ou como diz Barbara Santos, “para reinventar novos futuros”. Para enfrentar esse e outros desafios, foi necessário me unir a outras pessoas que me ofertaram instrumentos significativos para seguir na fronte. Vilma Melo, diretora do espetáculo foi e ainda é presença fundamental nesse processo. Não poderia deixar de citar, Barbara Santos, Ana Paula Black, Luiza Loroza, Beà Ayòóla, Clivia Coen, Binho Schaefer (in memória) e Cachalote Mattos mão que me amparam no início de tudo.
3.De que forma o espetáculo busca valorizar a identidade negra feminina e contribuir para o debate sobre representatividade e empoderamento?
Criando imagéticas positivas sobre a mulher negra e vislumbrando possibilidades outras de construirmos realidades diferentes daquelas que sempre estivemos fadadas.
Como os temas de ancestralidade e reinvenção se relacionam com suas experiências e influenciaram a dramaturgia e a encenação da peça?
Eu acredito que muitas vezes, agimos ou pensamos impregnadas de referências passadas, para dar conta das demandas do presente e trazer alívio para tempos futuros e nesse sentido, o fenômeno da ancestralidade atua de forma muito expressiva. A ancestralidade a meu ver é uma referência que nos ajuda a pensar a partir de nossos próprios terrenos e a maneira como mobilizamos essas referências é que vão nos ajudar a delinear nossas vivências. Além de inspiração e campo de referência formativa para desenhar a dramaturgia do espetáculo eu percebo a ancestralidade enquanto caminho de libertação de reflexão para compreender ações reais do dia a dia.
Como a obra de Conceição Evaristo inspirou “Meus Cabelos de Baobá” e seus textos foram adaptados para a linguagem teatral?
Conceição Evaristo é uma referência ímpar no campo da literatura, ela consegue poeticamente, apresentar narrativas de histórias muito caras para pessoas negras e foi com esse pensamento que me debrucei em algumas obras da autora. Algumas situações tratadas na obra teatral, emergem de realidades muito duras assim como duro, era o primeiro texto. Embebecida do modo de escrever de Conceição e com inspiração no argumento de Simone Ricco, fui dando tratamento ao texto, poesia nas palavras até chegar a versão que foi para o palco.
Pode nos contar sobre o processo de pesquisa, desenvolvimento e integração das danças negras africanas e outras expressões artísticas na peça?
As danças negras foram um dos fios condutores desse espetáculo. Uma de suas funções foi enriquecer a narrativa, através de seu repertório de movimentos que foram recriados para a cena. A música enquanto parceira da dança é um elemento essencial no espetáculo pois orienta sua dramaticidade e traz ludicidade para encenação.
Como “Meus Cabelos de Baobá” se encaixa em sua trajetória como educadora e artista?
Eu acredito na força das artes, enquanto estratégia de transformação social e que amplia a capacidade de expressão e comunicação do indivíduo. Meus Cabelos de Baobá é um grito que precisava ecoar, precisava sair da minha garganta, foi a maneira que eu encontrei de minimante sarar algumas feridas que durante anos estiveram abertas.
Qual é a importância do Edital EVOÉ – RJ para a circulação do espetáculo?
O edital EVOÉ está sendo fundamental para a continuidade do espetáculo Meus Cabelos de Baobá pois o referido edital nos possibilitou realizar apresentações na cidade do Rio de Janeiro onde residem todas as pessoas da equipe. E também em outras cidades do rio como Valença, Vassouras, Rio Bonito. O edital nos deu a possibilidade de levar o espetáculo, para dialogar jovens negros e negras do ensino médio, das comunidades e das periferias público que em breve, estará contribuindo para a transformação do país.
Como foi o processo para tornar o espetáculo acessível a públicos diversos, incluindo a incorporação de audiodescrição e intérprete de libras?
Acho fundamental que o espetáculo tenha a possibilidade de acesso para públicos diversos, o edital possibilitou essa ação porque pensou no próprio edital destinar uma boa parte da verba para ações diversas de inclusão.
Como você vê a intersecção entre arte e ativismo em projetos como “Meus Cabelos de Baobá”?
Para nós pessoas pretas, sobretudo mulheres pretas, é impossível pensar somente a arte pela arte, porque ao longo desta vida sofremos inúmeros ataques diretos e indiretos dessa sociedade racista que nos coloca em inércia. Nossa arte é ativista, porque é a luta para uma existência e como diz Jeff Alan para gente “Ser Artista custa uma vida inteira”
Como você vê a evolução da representatividade negra no teatro brasileiro e os desafios atuais?
Percebo que vem crescendo bastante as produções com temáticas negras, mas ainda está longe de ser suficiente, comparado com a quantidade de espetáculos produzidos ao longo do ano no Brasil. A representatividade precisa ser discutida, ainda tem muitas produções brancas copilando as narrativas negras, criando sim um mercado de trabalho para pessoas negras porém, ficando com a maior parte do capital no final do processo. Isso é problemático!
Quais são seus próximos projetos após “Meus Cabelos de Baobá”?
Meu principal projeto AGORA é terminar as apresentações do edital EVOÉ e, finalizar doutoramento na UERJ no PPGARTES – Programa de Pós-Graduação em Arte, orientada pela professora Luciana Lyra. A escrita que estou desenvolvendo na a tese traz um pouco de minha trajetória como pessoa, artista e pesquisadora e as reverberações advindas desses lugares. As duas imersões em dança, que realizei em 2015 e 2023 na Ecole des Sables no Senegal e o que ecoou dessas vivências também estarão registradas, além de minhas pesquisas em dança a partir da proposta elaborada pela bailarina Senegalesa Germaine Acogny. Só depois disto vou conseguir pensar em outro espetáculo, mas já tem ideias ao menos do nome “ Memórias dos Sentidos ou essência da casa de vó!” um projeto que desenvolvi com meu companheiro Cachalote Mattos durante o período assombroso da pandemia
Como o espetáculo dialoga com o cenário cultural brasileiro atual e contribui para a discussão sobre padrões eurocêntricos?
Sabemos que é inquestionável a contribuição artística e formativa das artes negras para nossa sociedade, principalmente porque elas mobilizam uma área de conhecimento que alcança o campo da sensível. O espetáculo Meus Cabelos de Baobá é uma ação artística e contemporânea de resistência e afirmação que junto as outras iniciativas, se desenrolam para mudar a realidade daquilo que está estabelecido.
De que forma você espera que a peça contribua para o debate sobre estéticas que atravessam a diáspora negra?
Enquanto estética, o que o espetáculo apresenta são conceitos que estão assentados nas questões culturais, artísticas, simbólicas, políticas, rituais, entre outras que envolvem o universo feminino afrodescendente. Com isso, mostramos que é possível construir expressões artísticas das mais variadas formas, a partir desse campo estético negro-referenciado.
O que você espera que o público leve consigo após assistir a “Meus Cabelos de Baobá”?
Espero que leve a poesia! A possibilidade de renascer e se transformar todas as vezes que somos atacadas. Espero que as pessoas negras entendam que somos início, meio e início, (Cosmologia Bakongo), renascemos com a força de nossa ancestralidade.
Quais foram os desafios encontrados para tornar a peça acessível e qual público você deseja atingir?
Sobre tudo o espetáculo foi pensado para as mulheres negras de todas as gerações, sempre a função do teatro negro é apresentar para os seus pares, com intuito de criar perspectiva de possibilidade de futuros para pessoas negras.
Quais são os planos para a circulação da peça em outras cidades e regiões do Brasil?
Meus Cabelos de Baobá, tem circulado bastante por São Paulo, mas temos enorme desejo de apresentar em outras praças, pois é fundamental que esse diálogo pssa ser realizado com pessoas de outras regiões do país quem sabe Salvador, Belo Horizonte, e fora do país Angola, Moçambique, quem sabe? Alô patrocinadores e produtores entre em contato!
Como “Meus Cabelos de Baobá” dialoga com outras iniciativas que promovem a representatividade negra nas artes cênicas?
Meus Cabelos de Baobá está sempre em diálogo com projetos de representatividade negra, já apresentamos no projeto Afrocentricidade coordenado por Denise Espirito Santo, festival Felino Preta, mostra Palavra de Mulher entre outros movimentos que pensam e fazem cultura também voltados para a cena negra brasileileira.
Quais são as perspectivas para o futuro da representatividade negra no teatro brasileiro?
Espero que os veículos de fomento e patrocínio possam cada vez mais viabilizar espetáculos com fazedores negros, pessoas negras em todas as áreas do teatro brasileiro.
Poderia compartilhar suas reflexões sobre a intersecção entre arte e ativismo, e suas expectativas para o impacto social de “Meus Cabelos de Baobá”?
Eu percebo esse movimento de arte e ativismo como fundamental para que os sujeitos engajados com as temáticas que circundam a negritude e especialmente as afrodescendentes, possam mobilizar cada vez mais espaços de ressignificação artística e ativista denunciando as narrativas hegemônicas que continuam marcando a história. Essa intersecção entre arte e ativismo vem sendo articulada com inspiração no histórico quilombo dos Palmares que teve seu êxito apagado da história. Meus Cabelos de Baobá e tantas outras iniciativas culturais, formativas e ativistas que vibram em direção ao respeito pela história e pela existência da população negra são de algum modo, ecos dessa resistência que foi Palmares
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