Texto 100% opinativo!
A trama que deveria celebrar os 60 anos da Globo acabou se transformando em palco de discussões sobre os limites dos remakes. Quando Vale Tudo estreou em março deste ano, trazia nas costas a responsabilidade de homenagear uma das novelas mais icônicas da televisão brasileira, aquela que imortalizou Beatriz Segall como Odete Roitman e provocou debates acalorados sobre ética e corrupção no Brasil pós-redemocratização. Contudo, o que vimos foi uma adaptação que divide opiniões entre quem assiste e, principalmente, entre quem acompanhou a versão original de 1988, como eu.
Preciso confessar: tentei acompanhar esta nova versão com a mente aberta, mas não consegui ir além dos primeiros capítulos. A última novela da Globo que realmente prendeu minha atenção do começo ao fim foi O Sexo dos Anjos, lá em 1989. Depois disso, parei de assistir novelas da emissora e migrei para outras produções que realmente me cativaram: Dona Beija e Kananga do Japão, a primeira versão de Pantanal, Xica da Silva na extinta TV Manchete, e mais tarde Perdidos de Amor na Band, e Éramos Seis e Pérola Negra, no SBT.
Essas novelas tinham algo que as atuais perderam: autenticidade, roteiros envolventes e elencos que sabiam dar vida aos personagens. Foi só em 2001, depois de O Direito de Nascer (remake do SBT de uma das primeiras novelas do país na extinta TV Tupi), que abandonei de vez as novelas e parti para o universo das séries. Vale Tudo original foi simplesmente épica, uma obra-prima que não precisava ser refeita. E aqui começa meu incômodo com essa atual versão.
O peso da nostalgia e a sombra do original
Diferentemente de remakes anteriores bem-sucedidos, como Pantanal em 2022, Vale Tudo enfrenta um desafio particular: a versão original está disponível completa no Globoplay. Isso significa que a comparação é inevitável e implacável. Como explica o consultor em teledramaturgia Mauro Alencar, em entrevista ao Estadão antes da estreia do remake, “tendo como base a psicologia da mídia, o público saudoso não precisa de remake porque ama o original”. Ele complementa dizendo que escrever um remake é como fazer uma novela nova, só que ainda mais difícil, já que há a memória afetiva do público com os atores originais.
O autor Silvio de Abreu, responsável por clássicos como Rainha da Sucata e A Próxima Vítima, revelou em entrevista à colunista Monica Bergamo, da Folha de S.Paulo, ser contra remakes. Ele admitiu que sua própria tentativa com Guerra dos Sexos foi “uma porcaria” e explicou: “A novela não faz sucesso só pelo texto, mas pelo todo. São os atores, o período, a maneira de dirigir, o momento em que ela é relevante, e que dali a dois anos pode não ser mais”.
Escolhas polêmicas que desvirtuam a trama original
Um dos pontos que mais me incomodou foi a escalação de uma Maria de Fátima negra, interpretada por Bella Campos. Não se trata de ser contra representatividade na TV, mas sim de respeitar a coerência da trama escrita por Gilberto Braga. Odete Roitman, eternizada pela grande Beatriz Segall, era uma das personagens mais explicitamente racistas da televisão brasileira. Na versão original, ela se identificava com Fátima justamente por ver nela a jovem Odete que também deu o golpe do baú. Como essa identificação pode existir quando Odete despreza pessoas pela cor da pele? Esse erro básico de entendimento da trama original, na minha opinião, matou a história logo no início.
Segundo análise do site NaTelinha, na coluna “Quarta Parede” de Walter Felix, outras mudanças também desvirtuaram a essência da obra. “Algumas alterações descaracterizam a essência da obra. É o caso dos personagens Consuelo e Poliana, que na versão original eram irmãos criando juntos os filhos de Consuelo (uma família não tradicional). No remake, Consuelo (Beliza Pombal) apareceu casada com Jarbas (Leandro Firmino), e não tendo mais relação familiar com Poliana. Ou seja, transformando-se numa estrutura familiar convencional”, aponta o texto. O site destaca ainda que personagens centrais foram esvaziados, como o mordomo Eugênio, interpretado por Luís Salém, que não é mais cinéfilo nem deslumbrado como na primeira versão.
Débora Bloch carrega a novela nas costas
Se há algo que todos concordam é que Débora Bloch está entregando uma performance digna de elogios como Odete Roitman. Minha mãe, que acompanha a novela religiosamente, não se cansa de comentar que a Débora está “carregando a novela nas costas”. Mas aqui mora outro problema: por que só ela se destaca?
A primeira versão teve atuações brilhantes não apenas do elenco principal, como Reginaldo Faria como Marco Aurélio, mas também do elenco de apoio. Renata Sorrah como Heleninha e Regina Duarte como Raquel foram espetaculares. Pedro Paulo Rangel como Poliana e Sérgio Mamberti como Eugênio criaram personagens inesquecíveis. Havia camadas, sutileza, profundidade. O que vemos agora são atores, como o site NaTelinha classifica como “básicos, simples, sem sal”. A própria atriz Bella Campos, segundo o portal, seria “ainda inexperiente para uma personagem tão complexa como Maria de Fátima“.
Adaptações que não agregam
Manuela Dias, autora do remake, defendeu em entrevista ao Estadão que “histórias que sobrevivem são as que são recontadas”. Ela argumenta que Vale Tudo é “uma história identitária do Brasil” e que quem já assistiu teria “um grande reencontro”. Será que teve mesmo?
As atualizações feitas parecem mais gratuitas do que necessárias. Transformar Fátima em influenciadora faz sentido para os dias de hoje, mas adicionar tramas como o diabetes de Solange ou discursos constantes sobre crise climática soam deslocados, forçados (afinal, duvido que a mãe da comunidade na fila do pão de manhã correndo para ir trabalhar está se ‘preocupando’ com a crise climática, ainda mais aquela causada pelo uso de aviões, que muitas delas nunca nem colocaram os pés).
O pesquisador Lucas Martins Néia, em entrevista ao Estadão, levanta uma questão importante: “Passa-se uma impressão de que não há nada de novo no front. Fala-se muito em certa crise de criatividade, mas que, de alguma forma, por trás do que seria justamente essa crise, há os executivos que têm medo de apostar em algo novo”.
A crítica nas redes sociais aponta que temas importantes como alcoolismo, ética e desigualdade de gênero foram abordados de “forma infeliz, com um texto raso, repleto de frases de efeito e sem qualquer sutileza”, conforme destaca o site NaTelinha.
Direção sem brilho e escolhas questionáveis
Outro ponto crítico é a direção de Paulo Silvestrini. Enquanto Pantanal e Renascer (mesmo com suas falhas) trouxeram direção criativa e inspirada, Vale Tudo ganhou “um clima solar, de novela das sete”, segundo análise da coluna “Quarta Parede”. A trilha sonora causa estranhamento, com momentos sérios ganhando sons incidentais divertidos. “Uma armação de Maria de Fátima e Odete foi embalada por uma música que remetia ao filme Missão Impossível“, exemplifica o texto.
Cenas emblemáticas da novela original, como a briga de Fátima com Raquel logo no início (para mim a cena mais inesquecível da novela, a mãe rasgando o vestido de noiva da filha), perderam o dinamismo e o ritmo que tinham na primeira versão. Faltou movimento, faltaram camadas, como se os atores fossem “meros bonecos sem reação”, nas palavras de Walter Félix do site NaTelinha.
Os rumores do final e o desrespeito à obra original
A novela está chegando à reta final e rumores em sites especializados indicam que Odete Roitman pode estar viva e será ela quem dará a famosa “banana” ao Brasil, ao invés de Marco Aurélio, como aconteceu no original. Se isso se confirmar, será a maior burrice cometida por Manuela Dias.
Afinal, aquela cena do Marco Aurélio dando “banana” para todos ao fugir do país, mostrava a corrupção brasileira, o pouco-caso com os crimes cometidos, a falta de respeito com a recém-democracia. Tirar isso das mãos do Marco Aurélio e jogar nas mãos de Odete não faz sentido! Ela é a vilã má, a que mata, que faz qualquer coisa para conseguir o que quer e ele o vilão corrupto, que não liga para as consequência porque tem em mente que “gente rica no Brasil não vai presa”. Como mudar isso?
A cena da “banana” marcou época e simbolizou a impunidade da elite brasileira. Mudar isso seria desrespeitar não apenas a obra de Gilberto Braga, mas também a memória afetiva de milhões de brasileiros que se emocionaram, e ficaram com ódio, com aquele desfecho.
Por que insistem em remakes quando há tanto talento criativo?
A verdade é que me recuso a acreditar que não existam roteiristas talentosos para escreverem novas novelas. Somos obrigados a assistir remake enlatado com atuação ruim? Como diz Silvio de Abreu: se algo fez muito sucesso, deixa quieto, não repete!
Fazer remake de uma novela que ninguém lembra e caiu no esquecimento é uma coisa. Mas a Globo tem teimado em refazer novelas que foram estrelas de sua época e está acabando com tramas originais que são brilhantes. Casos como “Irmãos Coragem” (1995), “Guerra dos Sexos” (2012) e “Elas por Elas” (2023) já mostraram que nem todo remake dá certo. O próprio “Renascer”, mesmo sendo de Benedito Ruy Barbosa, decepcionou e foi rejeitado pelo público por ser lento demais.
Ana Paula Gonçalves, pesquisadora e autora do livro “Brasil, Mostra Tua Cara: Vale Tudo, A Telenovela que Escancarou a Elite e a Corrupção Brasileira”, alerta que “remake é um risco muito grande, especialmente quando se trata de uma obra de muito sucesso”. E ela está certíssima.
O streaming como alternativa
Não é à toa que cada dia mais pessoas estão migrando para os streamings atrás de séries e até novelas de outros países. Simplesmente porque não se faz mais novelas como antigamente. A concorrência do streaming, aliada à falta de originalidade e à dificuldade em adaptar histórias antigas para a realidade atual, tem minado o sucesso das novelas brasileiras.
A verdade é dura, mas precisa ser dita: os remakes não estão funcionando porque a indústria perdeu a coragem de arriscar. Preferem apostar no que já deu certo no passado, mas esquecem que o público mudou, os costumes mudaram, a forma de consumir entretenimento mudou completamente.
Não adianta só atualizar figurino e cenário se o roteiro continua raso e a direção sem brilho. E tem mais: com o streaming oferecendo séries de altíssima qualidade a um clique de distância, as novelas precisam se reinventar de verdade, não apenas repetir fórmulas antigas com roupagem nova. O telespectador de hoje não aceita mais mediocridade disfarçada de nostalgia.
Vale Tudo deveria ter aprendido com os acertos de Pantanal e os erros de Renascer. Deveria ter respeitado a essência dos personagens originais, feito atualizações pertinentes sem descaracterizar a trama, escalado melhor seu elenco e investido em uma direção à altura do desafio. Mas não foi isso que aconteceu.
A lição que fica
Volto a insistir que a primeira versão de Vale Tudo foi épica demais para ser refeita. Odete Roitman foi eternizada por Beatriz Segall, e ainda que Débora Bloch esteja fazendo um excelente trabalho, a novela como um todo não sustenta o legado da trama original.
Espero sinceramente que a Globo aprenda com esse erro e pare de mexer em time que está ganhando. Existem tantas histórias novas para contar, tantos autores talentosos esperando uma chance. Por que insistir em desenterrar clássicos só para enterrá-los novamente?
Como disse Silvio de Abreu sobre seu próprio erro com Guerra dos Sexos: “Eu gostava tanto da novela que não quis mudar muita coisa; foi um erro”. Manuela Dias cometeu erro semelhante ao mudar demais onde não devia e manter o que precisava de mudança. O resultado? Uma novela que não agrada nem quem viu o original, nem quem está conhecendo a história pela primeira vez, afinal, a original foi disponibilizada ao mesmo tempo na Globoplay (comparações são inevitáveis).
Realmente vale tudo nas novelas brasileiras? Aparentemente sim. Vale desrespeitar tramas originais, vale escalações questionáveis, vale ignorar a coerência narrativa. Mas uma coisa não vale: esperar que o público aceite tudo isso calado. A baixa audiência e as críticas constantes provam que os telespectadores não são tolos. Eles sabem reconhecer qualidade quando veem e também sabem quando estão sendo subestimados.
Que esta experiência com Vale Tudo sirva de lição para Globo (e as outras emissoras também): nem tudo que foi sucesso no passado precisa ser refeito. E quando for inevitável fazer um remake, que seja com respeito, cuidado e, principalmente, talento suficiente para honrar o legado da trama original.

Carioca com alma paulista. Jornalista Digital, Assessora de Imprensa, Escritora, Blogueira e Nerd. Viciada em séries de TV, chocolate, coxinha & Pepsi. Segue no Insta: @poltronatv.ofc