Com mais de mil obras de arte de grande impacto, como murais e painéis espalhados ao redor de 21 países, o artista plástico paulistano Alexandre Keto também é reconhecido como um ativista de causas sociais, desenvolvendo projetos em colaboração com entidades como a ONU e o Médicos Sem Fronteira. Nessa trajetória, o artista residiu no Senegal, na Bélgica, na França e nos Estados Unidos.
Desde o início de sua carreira o continente africano é primordial fonte de inspiração. Na mais recente viagem que fez ao Egito, em maio de 2022, ao contemplar os templos, pirâmides e a arquitetura local, Keto percebeu que, além da beleza, cultura e arte exuberantemente expostas em paredes, havia também um sentimento de proteção e cuidado com o patrimônio social de gerações de famílias ali representadas.
Depois de um longo hiato provocado pela pandemia, em que não pode estar em campo para executar suas ações devido às restrições de isolamento, Keto agora retoma suas proposições de caráter artístico-social inspirado no que viu no Egito.
As reflexões possibilitadas por essa intensa experiência impulsionaram a criação do projeto Obra de Arte que, por meio de representações figurativas executadas com o suporte do cimento nas fachadas de casas e barracos– daí a licença poética com a expressão obra de arte – procura potencializar o sentimento de pertencimento de moradores de comunidades e favelas como Morro da Providência e Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, Serraria, em Diadema, no ABC Paulista, e Fazenda Grande Retiro, em Salvador, Bahia, ação que contou com o apoio da vereadora Maria Marighella, recentemente licenciada de seu mandato e nomeada presidente da Funarte – Fundação Nacional de Artes.
Desde o final de março, e ao longo de abril e maio de 2023, o artista realiza ações no Morro da Mangueira, com o propósito de executar intervenções em dez moradias. Trabalho que, desde a intervenção piloto, no Morro da Providência, conta com o apoio de mão de obra local, numa espécie de mutirão artístico-social. Interação que, ao aprofundar o conhecimento sobre o cotidiano dos moradores, tem revelado ao artista outros significados de Obra de Arte.
“A ideia do projeto também é, em certa medida, ajudar na economia local: a alimentação da equipe é local; o material para execução das obras é local; a mão de obra é local. Quando não, o próprio morador ajuda na execução. A ideia é fazer dessa mobilização um mutirão em prol da arte e do embelezamento, e também da segurança, porque o cimento protege as moradias de chuva, da umidade e de bichos peçonhentos. Uma moradora chegou a dizer que a intervenção vai protegê-la de balas. Como esses lugares são zonas de guerra, quando um projétil atinge um tijolo vazado, rasga igual papel, mas quando a parede é revestida com cimento, o concreto ajuda a aumentar a segurança. Essa moradora mostrou um lado do projeto do qual nem eu tinha pensado”, revela.
Nascido na Vila Prudente, na zona leste de São Paulo, Alexandre Keto cultiva desde a primeira infância a paixão pelo desenho. Ao frequentar a oficina de Hip-Hop de um centro comunitário de seu bairro, aos 11 anos, ele primeiro se interessou pelo break dance, mas logo abandonou a ideia de se tornar um b-boy ao conhecer o graffiti.
“Quando descobri que, nessa nova paixão, um dos quatro elementos era o graffiti, eu automaticamente fiz uma conexão que remeteu a minha infância: o desenho, que era a única coisa que me acalmava, que fazia com que eu desse sossego para minha mãe. Desenhar era minha brincadeira favorita,e descobrir que eu podia fazer isso em paredes, nas ruas, foi algo transformador, que me tirou de uma sensação de invisibilidade. Descobri que aquela era uma forma de comunicação, o que gerou a necessidade de pensar no que eu iria dizer”, recorda.
Desde então, o discurso de Keto foi sempre impregnado pela exaltação da cultura afrodiaspórica. Não por acaso, seu codinome artístico é inspirado em Kétou, no Benin, cidade do país onde realizou ações socioartísticas, e que faz referência a Alaketu, o reinado de seu orixá, Oxóssi.Outra grande inspiração para o artista foi o samba. Por influência de sua mãe, Ângela, que cantava em rodas de samba, Keto aprendeu a tocar cavaco e instrumentos de percussão, como o repique de mão. Essa familiaridade com o gênero musical que melhor define o Brasil dos subúrbios e das favelas também serviu de inspiração para o projeto Obra de Arte.
“Nesse processo, quem me ajudou muito, uma ajuda espiritual, foi o Cartola (1908 – 1980). A poesia do Cartola me alegra muito. No começo da Favela da Mangueira, ele provavelmente vivia em condições desumanas. Dentro de casa ele certamente tinha amor, mas ao sair de casa – um homem preto, favelado, com um violão de baixo do braço – dificilmente recebia amor na rua. Fazer samba era crime, considerado vadiagem. E mesmo assim o cara falava de amor. Isso é uma coisa completamente ancestral e mágica que a gente via também no Nelson Sargento, no Xangô da Mangueira”, defende.
A necessidade de retratar a realidade dos moradores, sobretudo, pelo viés de valorização de características de altivez pouco exploradas em meio a um cotidiano de tantas mazelas, é um dos nortes da pesquisa desenvolvida por Keto em Obra de Arte.
“Da mesma forma que os egípcios contam suas histórias nos templos, a ideia é fazer com que os moradores contem suas histórias. Em uma casa na Cidade de Deus, descobri que a neta da moradora era trancista, por isso fiz duas mulheres negras trançando cabelos. Ali está sendo contada uma história. Quando abordo os moradores sempre pergunto: ‘E aí, o que é que nós vamos contar? Daqui a 200, 300 anos, o que as pessoas que passarem por aqui têm de saber de vocês?”, explica.
Para Junior Gomes, presidente da Associação dos Moradores do Complexo da Mangueira, a intervenção promovida por Keto e a própria história pessoal do artista terá também o caráter edificante de demonstrar aos moradores que as comunidades são também celeiro de grandes talentos.
“O que mais me motivou a aceitar esse projeto na nossa comunidade é saber que o Keto é a prova de que dentro das comunidades também saem artistas. Ele é um artista que saiu da periferia de São Paulo, rodou o mundo e agora traz seu conhecimento para a periferia do Rio de Janeiro. O Complexo da Mangueira está de coração aberto para ele e vai aplaudir seu trabalho do começo ao fim. Estamos muito felizes, e demos a ele o título de Cidadão Mangueireinse”, diz.
As próximas etapas do projeto Obra de Arte contemplarão ações em quatro comunidades: Morro dos Prazeres e Cantagalo, no Rio de Janeiro; Heliópolis e Capão Redondo, em São Paulo. Depois de um longo ciclo de reflexão impulsionado por sua volta ao Brasil em setembro de 2021, período que sucede uma longa temporada vivendo em Nova York com todos os privilégios que conquistou ao longo de duas décadas, para Alexandre Keto o projeto Obra de Arte também simboliza um reencontro com a força motriz de sua criação artística: o papel social de seu trabalho.
“Não tinha como eu voltar a fazer graffiti, não tinha como eu voltar a pintar paredes e passar os próximos 20 anos fazendo as mesmas coisas. O momento, para mim, é de rever tudo. Hoje, ao invés de estar morando no Brooklin, contratado por uma galeria, fazendo comercial de TV e, entre aspas, estar no ‘topo’, estou concretando casas de gente humilde porque isso está muito mais alinhado ao meu propósito e é o que me deixa feliz”, conclui.
Site: alexandreketo.com
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