Em Busca de Judith

Em busca de Judith

Espetáculo parte de uma história familiar para investigar a relação entre arte, saúde mental e racismo estrutural.

por Jorge Rodrigues

Estreia no próximo dia 03 de Agosto, na Sala Multiuso do Sesc Copacabana, o espetáculo “Em Busca de Judith”, com a atriz, cantora e dançarina Jéssica Barbosa. A peça começou a ser criada há cinco anos, quando a artista ouviu pela primeira vez os relatos sobre a história de sua avó, Judith Alves Macedo, afastada dos filhos e internada num manicômio na Bahia, nos anos 40. A descoberta desta história disparou um processo de investigação sobre as fronteiras da saúde mental e sobre os aspectos sociais e coletivos da loucura, como os sintomas históricos e psíquicos do racismo estrutural.

“Até os 32 anos, eu acreditava que minha avó havia falecido num acidente de carro. Na verdade, quando meu pai tinha 40 dias de vida, minha avó, mulher negra, mãe de cinco filhos, foi internada compulsoriamente num hospital psiquiátrico e ficou lá até morrer, 13 anos depois. Dela se sabe pouco mais do que o nome. É sobre as buscas e descobertas dessa história, permeada pelo silenciamento das vozes femininas e questões que atravessam o sistema manicomial, que trata o espetáculo”, diz Jéssica Barbosa, que criou o texto a quatro mãos junto com Pedro Sá Moraes, que também assina a direção cênica e a direção musical.

Em cena, a atriz alterna entre o relato biográfico, narrações de antigas fábulas e a teatralidade quase cômica de personagens que marcaram sua busca. Nas canções, compostas por Sá Moraes especialmente para o espetáculo, Jéssica é acompanhada pelo cantor e multi-instrumentista Muato e o percussionista Alysson Bruno (alternando com Loiá Fernandes). Os versos combinam reflexão política e um lirismo pungente: “A Loucura, essa estranha parente / uma sombra que a gente pressente / quando perto, parece distante / quando longe, chegou de repente. Do normal, suas faces nocivas / que ocultamos com tanto trabalho / que aceitamos, porque coletivas / a loucura é uma espécie de espelho.”

A musicalidade é um dos eixos fundamentais do espetáculo. “Para além das canções”, diz o diretor, “o sentido rítmico e a conexão corpo-voz, conduzem a criação das personagens, das narrações, de toda a composição cênica. É uma abordagem ao teatro à qual venho me dedicando há muitos anos, chamada TeatroCanção.”

A música também sublinha a busca de Jéssica pelo reencontro com sua ancestralidade negra, como fonte de saúde e estruturação psíquica. Ao longo da pesquisa e criação de Em Busca de Judith, para atravessar a dureza da história familiar e dos relatos de  sofrimentos indizíveis dos internos nos manicômios, a atriz apoiou-se na conexão com a religiosidade de matriz africana. Por isso tem lugar especial os toques e cantigas para Orixás e Inquices e a dança afro conduzida pelo diretor de movimento Leandro Vieira.

A mãe de Judith, Francisca, dizem os relatos, foi uma mãe de santo no interior da Bahia, vitimada pelo racismo religioso, uma marca da construção social do Brasil. “Eu queria conhecer minha avó”, diz Jéssica, “acabei conhecendo um universo muito maior que o dela e de nossa família. Todos os preconceitos e fantasias que constituem o imaginário coletivo sobre loucura precisam ser tocados e, a partir desse lugar de escuta, é preciso pensar não só sobre o cuidado, mas sobre a produção de sofrimento psicossocial a partir dos acordos coletivos e da gestão política da vida”, diz Jéssica.

Foi por este compromisso com a coletividade e pela conexão com suas ancestralidades que Jéssica decidiu chamar Em Busca de Judith de um ebó, palavra em Yorubá que significa alimento sagrado, oferecido com propósito de reequilíbrio ético, psíquico e espiritual. Este ebó também foi sua motivação para investigar de maneira acadêmica os temas levantados pela peça através de um mestrado em dança na UFRJ, que conclui em Agosto, junto com a temporada no SESC.

Como num terreiro, a concepção cênica deste ebó é minimalista. Sob a luz, ora fantástica, ora cinematográfica de Fabiano Dadado de Freitas — que também é supervisor de direção —  a atriz entra em cena arrastando uma espécie de carrinho multi-uso (cadeira/baú/altar), criado pela cenógrafa paulistana Ana Rita Bueno, com o qual se relaciona e de onde tira objetos para contar as histórias. O figurino de Cris Rose lança mão de tecidos de origem africana e texturas em tom pastel para amplificar o gestual e a movimentação de Jéssica. Ao fundo, imagens das ruínas da Colônia Juliano Moreira são projetadas, emprestando textura e concretude histórica à busca por Judith, e às histórias de tantas outras pessoas que também vivenciaram a manicomialização e foram silenciadas.

LEGISLAÇÃO

Promulgada em abril de 2001, a Lei 10.216 preconiza o tratamento humanizado a pessoas que possuem algum tipo de transtorno mental, redirecionando o modelo assistencial em saúde mental. Porém, a luta antimanicomial no Brasil já vinha sendo travada desde o final da década de 1970, mais de uma década após a morte de Judith. A lei fez com que o Brasil construísse uma política pública de saúde mental que, até então, era destinada apenas ao encarceramento de pessoas que, em muitos casos, apenas contrariavam as convenções sociais. “Numa época em que agentes políticos e ideológicos da extrema direita vêm advogando e promovendo retrocessos terríveis no campo da saúde mental, como internações compulsórias, o espetáculo clama pela preservação dos avanços cruciais da reforma psiquiátrica, e pelos muitos passos que ainda precisamos dar para uma sociedade humana de fato,” diz Pedro Sá Moraes.

Jéssica Barbosa completa: “concordar de forma igualitária e homogênea nunca vai ser possível, talvez nem seja bom, mas em discordância e diferença podemos pactuar acordos éticos que dizem respeito à toda sociedade, essa seria a possibilidade de viver políticas de saúde mental em democracia de fato.”

CIRCULAÇÃO

O espetáculo foi realizado pela primeira vez em 2021, como peça filme, com recursos da Lei Aldir Blanc. Em 2022 foi encenado no Itaú Cultural, em São Paulo, e recentemente vem circulando por diversas regiões do Estado de São Paulo, como a comunidade quilombola de São Pedro, no Vale do Ribeira, e diferentes cidades no Vale do Paraíba e região metropolitana de São Paulo. Esta será a primeira vez que Em Busca de Judith será apresentada no Rio de Janeiro.

SERVIÇO:

  • Espetáculo Em Busca de Judith
  • Sala Multiuso do Sesc Copacabana
  • Estreia dia 03 de agosto
  • De quinta a domingo – às 20:30 – Até 27 de agosto
  • Local:Rua Domingos Ferreira, 160
  • Valores: R$ 30 (inteira) / R$ 15 (meia) / R$ 7,50 (associados Sesc)
  • Duração: 68 minutos
  • Classificação Etária: 12 anos
  • Gênero: Teatro Canção

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