O passado, o presente e o futuro do Boca Livre

Boca Livre: Lourenço Baeta, Zé Renato, David Tygel e Maurício Maestr
Boca Livre: Lourenço Baeta, Zé Renato, David Tygel e Maurício Maestro. Foto: Alexander Landau

Quarteto volta a se reunir depois da separação em 2021 para lançar novo single, fazer shows, celebrar Grammy e trazer para as plataformas digitais dois álbuns clássicos. “Boca Livre” e “Bicicleta” já estão disponíveis nos aplicativos de música.

Os primeiros versos da novíssima canção parecem trazer embutida a notícia que já corria à boca pequena, mas que agora é oficial. O que era vertigem, miragem para os fãs de música brasileira, tornou-se milagre, aparição. Eis a surpresa revelada: o Boca Livre voltou!

A separação, ocorrida em 2021, causada evidentemente pelas confusões da pandemia e as discordâncias da vida brasileira nos últimos anos, mostrou-se apenas uma pequena interrupção na trajetória de 45 anos do grupo. A velha amizade e principalmente a harmonia – musical em geral e vocal em particular – venceram.

“De forma inesperada, surpresa revelada:
Milagre, aparição
Vertigem ou miragem, esfinge na paisagem:
Atinge o coração”
Rio Grande (Zé Renato e Nando Reis)

Aparentemente conformados, ao contrário dos fãs, com a definitiva separação, David Tygel, Lourenço Baeta, Maurício Maestro e Zé Renato começaram a receber, no entanto, sinais de que não era bem assim. O primeiro foi no início do ano, quando o Boca Livre ganhou o Grammy Awards, na categoria Melhor Álbum de Pop Latino, com “Pasieros”, no qual, a convite do compositor, interpretam a obra do panamenho Rubén Blades. Disco gravado em 2011, mas lançado somente em 2022, trabalho atualíssimo que o grupo não teve oportunidade sequer de divulgar. Atrasados por causa de um engarrafamento de limusines em Los Angeles, David Tygel e Zé Renato chegaram à cerimônia de premiação um pouco depois de Lourenço Baeta agradecer num inglês assustado ao importantíssimo prêmio. Juntos, os três ligaram para Maurício Maestro, que ficara no Brasil. Primeiro reencontro.

O segundo sinal foi a intenção do produtor original dos LPs, João Mário Linhares, de relançar nas plataformas digitais os dois primeiros – e míticos – discos do Boca. Ou seja, o destino estava a dizer que, sim, o Boca Livre tinha um presente a viver: festejar, badalar, e até quem sabe levar para o palco um disco novo que ganhou o prêmio internacional mais importante da indústria musical. E tinha um passado para cuidar: trazer para o mundo digital o inaugural Boca Livre (1979), famoso como fenômeno do disco independente que lançou o grupo e consagrou clássicos da música brasileira como “Quem tem a viola”, “Toada”, “Mistérios”, “Diana”, entre muitos outros; e o não menos importante “Bicicleta” (1980), com outros clássicos, e a participação de ninguém menos do que Tom Jobim em duas faixas (“Correnteza” e “Saci”) e do percussionista Naná Vasconcelos.

Passado para cuidar, presente para viver. E o futuro? Foi escancarado justamente pela canção citada no início deste texto, “Rio Grande”, música novíssima de Zé Renato e Nando Reis – a primeira de um Boca Livre com um integrante dos Titãs, como se os anos 80 se unissem numa canção – que logo na primeira reunião foi percebida como ideal para marcar o retorno do grupo à música. Ela é nova e original o suficiente, mas com sua harmonia calcada no violão com cordas soltas, espaço para viola, solos vocais e aberturas de vozes, a temática da letra cheia de alusões à natureza que a faziam parecer também já um clássico do Boca Livre.

A volta aos shows já em novembro e até um documentário sobre a trajetória do grupo, a ser feito pela premiada diretora Susanna Lira (de “Clara Estrela”, sobre Clara Nunes), completam as muitas ações que parecem querer compensar com sobras os anos de ausência do grupo.

Então vamos organizar aqui como será a agitada volta do Boca Livre.

A primeira ação, a partir agora do dia 22 de setembro, será o lançamento, pela gravadora Universal, dos dois primeiros álbuns do grupo nas plataformas de streaming. Muito oportuno, aliás, para um grupo que se refunda, voltar antes de tudo às origens. E o que se encontra lá? Em “Boca Livre” (1979), mais do que um desfilar de clássicos e a memória de um sucesso estrondoso – mais de 150 mil cópias de uma produção independente, fato inédito para a época – a consagração de um estilo logo no primeiro trabalho: as violas e violões se entrelaçando; os vocais sofisticados, cada voz como que fazendo solo sem perder a harmonia; o lançamento de composições de integrantes do grupo, “Toada” e “Quem Tem a Viola” de Zé (em parceria com Cláudio Nucci, que fazia parte da primeira formação), “Mistérios” de Maurício, “Minha Terra” de David, e até uma composição de Lourenço, o clássico “Feito Mistério”, que viria a entrar no lugar de Cláudio apenas no segundo disco. Isso sem falar na impecável seleção de repertório, composições de autores ao mesmo tempo modernos e telúricos, gente como Milton Nascimento (“Ponta de areia”), Toninho Horta (“Diana”, “Pedra da Lua”), Nelson Angelo (“Boi”, “Fazenda”), Geraldo Azevedo (“Barcarola do São Francisco”). E trazendo letristas da estirpe de Juca Filho, Fernando Brant, Joyce Moreno, Cacaso, Carlos Fernando.

Se o primeiro é uma obra-prima – do nível, na música brasileira, de um “Chega de Saudade”, de João Gilberto, de um “Samba Esquema Novo”, de Jorge Ben – “Bicicleta” (1980) seria uma espécie de consagração. Já bastaria a participação de Tom Jobim na sua “Correnteza” e em “Saci” (Paulo Jobim e Ronaldo Bastos), não apenas tocando piano como participando do vocal, harmonizando-se literalmente ao Boca Livre como quem dá um aval. Mas tem mais: a recorrência do estilo e a da forma, comprovando que o primeiro não era fogo de palha, canções e cada membro do conjunto, Zé vindo com bucólica “As Moças” (com Juca Filho) e a esvoaçante “Bicicleta”; Maurício com a singela “Neném”, David com a densa “Porto Seguro” (letra de Márcio Borges) e Lourenço, agora já parte do grupo, com “Passarinho”. Ao repertório de grandes compositores – Nelson Angelo e Cacaso (“Um Canto de Trabalho”), Danilo Caymmi e Ana Terra (“Nossa Dança”) – o Boca Livre abriga uma canção de Dalmo Medeiros, então no coirmão Céu da Boca, hoje no MPB-4, comprovando que há uma linhagem dos grupos vocais no Brasil, e um medley de bois do Maranhão, uma profissão de fé na música popular do Brasil, marca do grupo. O Boca Livre estava pronto para os quarenta e tantos anos seguintes.

Revista sua origem, seu passado, um mês depois o Boca Livre chega ao futuro: será lançado pela MP,B/Som Livre, no dia 27 de outubro, nos aplicativos de música, a primeira gravação do grupo desde o lançamento de “Viola de Bem Querer”, de 2019. Bem na tradição do Boca Livre, “Rio Grande” é uma composição de um integrante do grupo, Zé Renato, e com parceiro novo, Nando Reis. Nascida meio por acaso, Zé estava trabalhando a música e, assim que escutou, o produtor paulista Marcus Preto sugeriu que a melodia fosse mandada para Nando que, fã do Boca, escreveu a letra na medida. Zé mostrou ao resto do grupo logo no primeiro encontro, um ensaio como sempre na casa de David em Ipanema, no Rio, e a decisão foi unânime: “Rio Grande” marca o renascimento do Boca Livre e foi gravada no estúdio Visom, com arranjo de Maurício Maestro, que também toca o baixo elétrico, Zé Renato nos violões, David na viola, Lourenço na flauta, além de bateria e percussão de Marcelo Costa (presente desde o primeiro disco), o piano de João Carlos Coutinho, o violoncelo de Aleska Chediak e o saxofone do produtor da sessão, Zé Nogueira. Como sempre foi.

O reencontro chegará, é claro, aos palcos do Brasil, no tempo certo. Antes, contudo, e já como efeito do Grammy em língua espanhola, o Boca Livre retorna aos palcos no Uruguai, em 5 de novembro, no tradicional Festival Música de la Tierra. De volta à terra, agora não só no Brasil, mas na Terra inteira.

Hugo Sukman, setembro de 2023